0# CAPA 2018.04.04 VEJA www.veja.com Editora ABRIL Edição 2576 – ano 51 – nº 14 4 de abril de 2018 [descrição da imagem: fundo da capa em preto, e na metade esquerda foto do rosto do presidente Temer. Tem cabeça um pouco inclinada para frente, olhar para baixo e apertando os lábios] APERTA O CERCO A TEMER A prisão de amigos do presidente leva a investigação dos portos para a porta do Palácio do Planalto EXCLUSIVO Mensagem revela que decreto beneficiou empresa suspeita de pagar propina VEJA localiza testemunha-chave em Paris: “Está todo mundo milionário” [parte superior da capa: imagem de duas forcas, uma de cada lado os dois títulos] O STF DECIDE: Ou Lula vai preso Ou acaba a lava-Jato _______________________ 1# SEÇÃO I 2# SEÇÃO II 3# BRASIL 4# INTERNACIONAL 5# ECONOMIA 6# GERAL 7# CULTURA _____________________________ 1# SEÇÃO I 2018.04.04 1#1 VEJA.COM 1#2 CARTA AO LEITOR – FUTURO SOMBRIO 1#3 ENTREVISTA – MARC PRENSKY – UMA NOVA CULTURA 1#4 LEITOR 1#1 VEJA.COM O DIA D PARA LULA Na quarta-feira 4, o Supremo Tribunal Federal volta a se reunir para discutir se concede ou não um habeas-corpus para impedir o iminente encarceramento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em razão do racha entre os ministros sobre a prisão em segunda instância, o resultado é imprevisível. Especial mostra todos os desfechos possíveis — da concessão ou negativa do benefício para o petista ao congelamento por tempo indefinido do caso — e atualiza um “termômetro” sobre qual das várias alternativas tem ganhado mais corpo nos dias que antecedem o julgamento, que será exibido ao vivo no site de VEJA. Abr.ai/hcdelula Probabilidades — O STF julga o caso e define se livra Lula da prisão — A sessão é novamente adiada — Ministro pede vista por tempo indeterminado — A Corte vota antes a prisão em segunda instância, e Lula pode nem precisar mais do habeas-corpus — A pauta é alterada e não se discute o pedido do petista CBF OU STF? Com o Supremo Tribunal Federal e a seleção brasileira em alta no interesse popular, é hora de fazer o tira-teima. Quem você conhece mais? Os onze ministros que integram a Corte ou os onze titulares de Tite para a Copa da Rússia? Faça o teste. abr.ai/cbfoustf ESTRAS MIRINS A menina Eloah, de 11 anos, tem um canal com mais de 1 milhão de inscritos. O de sua irmã, Ester; de 6, acumula 250.000. Já Erick, de 11 anos, acaba de entrar em um curso de vídeo específico para crianças. Os três estão em reportagem sobre os pequenos youtubers do Brasil, o segundo país que mais consome produções da plataforma de vídeos e onde 36 dos 100 canais mais vistos têm conteúdo infantil e 17 bilhões de visualizações. Especial aponta ainda os riscos da exposição precoce. abr.ai/youtubersmirins 1#2 CARTA AO LEITOR – FUTURO SOMBRIO AS CIRCUNSTÂNCIAS EXATAS em que a caravana do ex-presidente Lula foi alvejada por três tiros no interior do Paraná, na terça-feira da semana passada, ainda não foram totalmente esclarecidas — e, a depender dos detalhes que venham à tona, talvez a leitura do episódio seja alterada. Mas, até agora, surgiram indícios de que se tratou de um ataque organizado, entre outros, por militantes de extrema direita. Pois bem. Se a suspeita for confirmada, o caso, além de intolerável agressão à democracia, terá sido um brutal erro político. Nessa hipótese, o atentado a bala dará — e em boa medida já está dando — consistência inédita ao discurso vitimizador do PT. Se antes Lula caía no vazio ao dizer que era alvo de uma caçada antidemocrática, de uma perseguição implacável destinada a destruí-lo a qualquer custo, os radicais arruaceiros, agora, acabaram de dar razão a Lula. Afinal, ser alvo de um atentado a bala é, sem dúvida, uma caçada antidemocrática, uma perseguição implacável. Trata-se de uma ação inaceitável. Embora distintas na forma e no conteúdo, as ameaças contra o ministro Edson Fachin e sua família, reveladas por ele próprio em entrevista ao jornalista Roberto D’Ávila, são igualmente deploráveis e, também elas, constituem agressão intolerável à democracia. Fachin, ministro do Supremo Tribunal Federal, não detalhou as ameaças que vem recebendo, mas é fácil supor que elas tenham relação com seu papel decisivo nos desdobramentos da Lava-Jato, que, pela primeira vez na história brasileira, sinaliza encerrar a longa impunidade de criminosos de colarinho branco. Nos dois casos, o ataque à caravana de Lula e as ameaças ao ministro Fachin, estamos diante de uma afronta às liberdades democráticas. Pouco importa o que se pensa de Lula, do PT, de Fachin, do STF ou da Lava-Jato. Pouco importa que Lula e o PT tenham, eles próprios, defendido de modo sistemático, tanto na oposição quanto no governo, a intolerância contra seus adversários políticos. Pouco importa, enfim, que os petistas estejam agora recebendo tratamento semelhante ao que já dispensaram aos inimigos. Não estamos sob o império da lei de talião. Em uma democracia, esse tipo de violência não é tolerável, independentemente de quem seja a vítima e de quem sejam os autores. Cabe às autoridades investigar esses crimes e puni-los com a eficácia prevista na lei. Se a resposta a esse comportamento criminoso não for efetiva, lamentavelmente o futuro será sombrio para a ainda jovem democracia brasileira. Porque a inação do Estado contra a violência política é, em si mesma, uma forma de violência política. 1#3 ENTREVISTA – MARC PRENSKY – UMA NOVA CULTURA O inventor da expressão “nativos digitais” diz que as crianças da era da internet formam uma geração que pensa igual e não dá tanta importância à privacidade ameaçada pelo Facebook. MARIA CLARA VIEIRA HÁ DEZESSETE ANOS, o americano Marc Prensky, especialista em educação, criou as expressões “nativos digitais” e “imigrantes digitais” para diferenciar os que já nasceram na era da internet daqueles que tiveram de se adaptar a ela. Desde então, os nativos multiplicaram-se e cresceram a ponto de, segundo ele, não haver atualmente nos Estados Unidos nenhum imigrante digital em sala de aula. Autor de diversos livros e palestrante requisitado, Prensky, de 72 anos, que estudou nas universidades Harvard e Yale, concorda que houve excesso no uso recente de informações pessoais do Facebook para fins eleitorais, mas pondera que a privacidade nestes tempos já não é tão relevante. Não poupa críticas aos atuais métodos de ensino, que considera defasados em relação às necessidades dos alunos e do mercado. “Precisamos de jovens que escrevam menos artigos e ensaios e produzam mais”, alfinetou, em entrevista a VEJA durante visita ao Brasil. A recente descoberta do uso de informações pessoais capturadas via Facebook para fins eleitorais e divulgação de fake news reacendeu o debate sobre privacidade na rede. Há como preservar pelo menos parte dessa privacidade? A questão é saber com o que vale a pena se preocupar. É mais ou menos como quando a pessoa se muda para uma cidade grande. Ela está ciente de que existem perigos, mas quer muito morar lá, então aceita os riscos e toma suas precauções. O acesso a dados pessoais só é danoso no momento em que se reverte em objetivos espúrios. Esse é o único problema. O resto é sigilo bobo, como a insistência em tratar salários como coisa confidencial. Vejo a geração atual movimentando-se na direção de uma sociedade muito mais aberta em termos de informações. O que se pode aprender com esse escândalo envolvendo o Facebook? O caso nem é tão escandaloso quanto a imprensa faz parecer. O fato é que estamos no início de um vasto experimento no sentido de definir o que é vida privada no mundo virtual. Muitas questões vão surgir, como aconteceu sempre que pioneiros exploraram novos lugares. A diferença é que agora somos mais de 2 bilhões de indivíduos explorando juntos. Isso significa que os problemas vêm à tona mais rapidamente e podemos buscar soluções mais cedo. A longo prazo, a lição que se tira desse tal “escândalo” é a mesma que aprendemos com a democracia: vigilância, sempre. Seu artigo sobre nativos digitais foi escrito em 2001, e as crianças lá citadas hoje são adolescentes. O que mudou desde então? Assistimos ao surgimento de uma nova cultura. Ser um nativo digital não significa saber automaticamente tudo sobre tecnologia. Significa que, por terem convivido com a tecnologia desde sempre, as crianças veem o mundo de outra forma. Um bom exemplo dessa mudança cultural é justamente a questão da privacidade. As pessoas da minha geração acham a preservação da vida privada um bem inegociável e extremamente importante. Elas têm receio de expor sua vida on-line e frequentemente dizem aos mais jovens para tomar cuidado com o que postam. Há alguns perigos, é verdade, e ninguém pode abrir sua intimidade sem filtros. Mas o valor da privacidade, em si, não é mais o mesmo. Ela deixou de ser relevante? Sim. Os jovens nascidos nesta nova cultura não têm medo de ser vistos. Se alguém conheceu as duas eras, valoriza a privacidade e precisou se adaptar aos novos tempos, é um imigrante. Se nasceu e cresceu no mundo da tecnologia, é um nativo. Agora, claro que se trata de uma metáfora. Não se podem classificar nativos e imigrantes pelo ano em que nasceram. A questão é ter ou não passado pela adaptação digital. É quase como se dois grupos vivessem em planetas diferentes. Além da familiaridade com as redes, o que mais é típico dos nativos digitais? Eles têm enorme facilidade de compartilhar as coisas e por isso trabalham melhor em grupo. Também têm uma visão de mundo mais ampla, porque se comunicam com facilidade com gente de toda parte. Tenho reparado que os jovens, em especial os que entendem bem de tecnologia, são praticamente iguais em todo o planeta. Costumo dizer que os nativos digitais formam a primeira geração horizontal de que se tem notícia. De que forma isso se manifesta? Quando converso com crianças e adolescentes, seja no Brasil, no Japão ou em Nova York, todos repetem as mesmas ideias. Querem ter mais poder, querem se conectar e atuar em grupo desde muito cedo. Foi-se o tempo em que os adultos podiam controlar as crianças e exigir que repetissem truques ensinados, como se fossem animais de estimação. Se alguma coisa na Síria chama a atenção do meu filho, por exemplo, ele pode facilmente contatar alguém de lá para conversar sobre o que está acontecendo. Eu não consigo mais controlar completamente suas ações, como era comum no passado. É uma geração poderosa, que quer e pode tomar atitudes que nunca tomamos na idade deles. Há riscos nessa revolução? Sim, mas eles são maiores para os mais velhos. Se os jovens estivessem no comando das nações, muitos ministros da educação e, creio, a maioria dos professores estariam desempregados. O que se ensina atualmente não é o que os alunos querem ou aquilo de que precisam. Não há como escapar das mudanças revolucionárias que estão ocorrendo na vida das novas gerações. Mas elas terão resultados muito melhores se nós, adultos, optarmos por não interferir, oferecermos só um ou outro conselho de vez em quando e pararmos de nos preocupar tanto com o que os jovens estão fazendo. Os nativos digitais não estão perdendo lições valiosas quando deixam de ouvir os mais velhos? Não. Quando a vida era vivida de maneira menos acelerada, o que as pessoas mais velhas tinham a dizer valia por muito tempo. Agora, a maior parte fica ultrapassada rapidamente. Fazer faculdade é um exemplo. Os mais velhos acham que ter diploma universitário é essencial para ganhar bem e ter uma carreira de sucesso. Havia até estatísticas que confirmavam isso. Mas são números do passado e nada garante que sejam válidos no futuro. Muitas empresas já dão muito mais peso à experiência do que ao diploma. Buscam pessoas que resolvam problemas, que se envolvam com o trabalho, que façam as coisas acontecer — e isso não é ensinado na faculdade. Que adaptações o senhor acha necessárias na educação? Educação, a meu ver, é o processo que transforma crianças em jovens e jovens em adultos. O sistema escolar que adotamos não é mais capaz de alcançar esse objetivo. Um exame como o Pisa, que faz um ranking dos estudantes do mundo a partir de seu conhecimento de matemática, linguagem e ciências, é uma bobagem. Avaliações como essas refletem ainda um modelo de ensino ultrapassado. O senhor é a favor de eliminar as disciplinas tradicionais do currículo? Acho que deveriam ser muito reduzidas. A quantidade de coisas que todo mundo precisa armazenar na cabeça é muito pequena. O problema é que escapar do modelo conhecido é um risco, e nem os professores nem os pais são muito abertos a novos experimentos no campo da educação. O Google está tornando a memória dispensável? Não acho que a memória vá se tornar dispensável, mas temos de decidir o que vale a pena guardar. Crianças e adolescentes decoram muita informação à toa. É claro que é importante manter algumas habilidades e conhecimentos, mas, na verdade, são muito poucos os que de fato importam. Decorar a tabuada do 5, por exemplo, ajuda a ver as horas em relógios analógicos. Já saber de cor quais são os cinco países mais populosos do mundo não serve para grande coisa, O importante é memorizar o cenário, ter uma visão geral, ser capaz de contar a história do Brasil em alguns tuítes. Mais que isso, quem se interessar vai buscar na internet. Isso não promove a preguiça mental? Sócrates achava que a escrita criaria mentes preguiçosas. Felizmente, estava errado. Foi justamente aplicando a nova tecnologia da escrita que Platão pôde preservar os pensamentos do mestre para a posteridade. Toda geração considera que os pais trabalham demais e os filhos são preguiçosos. Eu acho ótimo não precisar decorar coisas só porque os outros mandam, mas lembro, sim, com prazer, nomes, fatos, citações que aprendi quando tinha de fazer isso. Como educadores, podemos e devemos ajudar os mais jovens, individualmente, a perceber o que vale a pena guardar na memória. Várias pesquisas apontam para jovens cada vez mais ansiosos e deprimidos. Os nativos digitais têm alguma desvantagem em relação a outras gerações? Está brincando? Eles só têm vantagens. Estão ansiosos porque vivemos em um mundo ansioso. Outra crítica aos tempos atuais é que os jovens só sabem se conectar virtualmente. É verdade? Pode até ser, mas não há nada no mundo que garanta que falar cara a cara seja a melhor forma de comunicação. Tanto pessoalmente quanto nas redes sociais, sempre haverá a necessidade de aprender a se aproximar, a formar laços. Ninguém sai batendo porta ou gritando em uma briga virtual. Não há uma perda, em termos de emoção? Quem diz isso está desprezando a força da literatura, que expressa emoções profundas sem o envolvimento de qualquer tipo de contato físico. Quando o telefone foi inventado, as pessoas descobriram quanta emoção pode ser transmitida usando apenas a voz. No caso do celular, há aplicativos que permitem ver o rosto da outra pessoa. E desligar quando não queremos ver mais, o que é bem mais difícil de fazer pessoalmente. As mensagens de texto são acompanhadas de emojis, ícones, vídeos, sons. Daqui a pouco cada um será capaz de transmitir emoções projetando-se nas carinhas existentes. A emoção nunca vai desaparecer, mas há muitas maneiras de demonstrá-la. Além disso, quando conversam cara a cara, muitas pessoas fazem de tudo para disfarçar suas emoções. As comunicações frente a frente são superestimadas. É difícil distinguir entre verdade e mentira na internet. Os nativos digitais não terão ainda mais dificuldade? Não acredito. É tão difícil para eles quanto para qualquer um. As pessoas que aprenderam a dirigir quando o carro foi inventado tiveram quase tanta dificuldade quanto um jovem que pega pela primeira vez no volante hoje em dia. Nas conversas que tenho com crianças e jovens, já me relatam ouvir constantemente dos professores que não se pode acreditar em nada que esteja na internet. Veja que absurdo ensinar isso. 1#4 LEITOR ASSUNTOS MAIS COMENTADOS Artigo” Errando para pior”, de J.R. Guzzo O STF e a Páscoa de Lula O alerta para se proteger do vírus da gripe O feminismo no mundo das bonecas Cleo Pires (Entrevista) O ESCÂNDALO DO FACEBOOK “Este é o meu perfil. Tome-o para você e use-o à vontade. Indevidamente. Como queira. E, de quebra, ainda tenha acesso ao dos meus amigos e familiares.” Ninguém fez isso. Portanto, teve a sua intimidade manipulada. O escândalo dos dados abertos pelo Facebook para fins eleitorais foi um golpe para quem é avesso à invasão de privacidade (“Algo de podre no Facebook”, 28 de março). Ana Magdala Rio de Janeiro. RJ J.R. GUZZO Excepcional o artigo “Errando para pior”, do notável articulista J.R. Guzzo. Inquestionavelmente, o vigente regime político brasileiro não tem mais condições de assegurar ao cidadão o direito à própria existência. Ademais, os nossos governos são escolhidos por eleitores que têm um dos piores níveis educacionais do universo: quase a metade da população é analfabeta pura ou funcional. Luiz Gonzaga Bertelli Presidente da Academia Paulista de História (APH) e vice-presidente da Academia Paulista de Educação (APE) São Paulo, SP Irretocável, J.R. Guzzo. Parabéns pelo excelente artigo. Resumiu o verdadeiro Brasil em que vivemos: simplesmente vergonhoso. Nesses meus oitenta anos de vida, pela primeira vez, sinto-me enojado dos três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. Fui executivo de uma multinacional por mais de trinta anos, recolhendo pelo teto da Previdência por mais de vinte anos e minha aposentadoria é de 2703,60 reais. Vejo um Judiciário envergonhando todos os brasileiros, o Executivo totalmente desacreditado e o Legislativo infestado de bandidos e ladrões. Pobre Brasil, não merecemos. Paulo Machado Mogi das Cruzes, SP J.R. Guzzo, meus parabéns pelo excelente artigo. Confesso que havia tempo não lia um artigo que expressasse de modo tão simples e objetivo quanto nós, “sociedade brasileira”, estamos em ruína.... Isso é muito triste! Wellington Pereira Franklin Campinas, SP A sabedoria de J.R. Guzzo nos leva a concluir que somente um novo sistema de governo poderá nos livrar do aprisionamento em que nos colocaram. Sergio Portugal São José dos Campos (SP)., via smartphone O STF E LULA Causa profunda tristeza e vergonha a postura do STF (“A Páscoa de Lula”, 28 de março). Cadê o papel de guardião da Constituição? Um tribunal em que a maioria atende somente a interesses políticos. Assumimos que somos uma Republiqueta das Bananas... Rodrigo Helfstein São Paulo (SP), via smartphone Impossível ficar indiferente à “sessão fura-fila” do STF, pelas circunstâncias de um espetáculo indigno de uma corte que deveria ser suprema, chegando ao cúmulo de vermos o ministro que mais insistiu ou pressionou a presidente tirar do bolso uma passagem já com voo marcado, mesmo sabendo que a sessão poderia estender-se por tempo indeterminado devido à sua importância. Pelo andar da carruagem, teme-se por um STF que possa vir a se transformar num PTF — Pequeno Tribunal Federal, cujos membros deixariam de condenar os excessos, principalmente daqueles que os favorecem. José Herminio Caltabiano Taubaté, SP A ministra Cármen Lúcia disse recentemente, e mais de uma vez, que o Supremo não discutiria a questão da prisão após a condenação em segunda instância: seria “apequenar-se”. Pois bem, o Supremo “apequenou-se” (antes mesmo de votar a matéria) com o acolhimento dessa vergonhosa liminar que concedeu um prazo “extra” para a defesa de Lula. Hélcio Murad Santa Rita do Sapucaí, MG Vivemos numa época de retórica repetitiva e sufocante. A Constituição é usada como uma sanfona, esticada para lá e para cá, dependendo da conveniência de cada um, para proferir a “Absoluta Verdade”. Para completar o quadro, alguns mudam de opinião como seus netinhos mudam de fraldas. Em consequência, a delicada democracia vira uma criança recém-nascida e abandonada, que luta entre a vida e a morte. Nesse clima de erudita complacência e vanglória, o país que sofre continua afundando, mas não deixa de amamentar corruptos, compadres e apadrinhados. Francesco D’Andrea Recife, PE GRIPE Parabenizamos o trabalho da jornalista Giulia Vidale, com sua reportagem “A viagem da gripe” (28 de março), que nos serviu de fonte de conhecimento e será de grande uso em momentos futuros. João Borges e Raphael Marques Juiz de Fora, MC Nós, do Colégio dos Jesuítas, lemos a reportagem que relata os perigos da gripe e escrevemos para parabenizá-los pela iniciativa que poderá ajudar milhares de cidadãos do nosso Brasil e de outras partes do planeta. Essas informações podem conscientizar a população para que consiga se precaver contra esse vírus. Gustavo de Almeida e Arthur Teodoro Juiz de Fora, MG BONECAS Adoramos a reportagem “Bonecas poderosas” (28 de março), com destaque para a Barbie Frida Kahlo, pois nos revela que a futura geração tem um novo olhar: a verdadeira beleza, que está no caráter, e não no físico. Obrigado por nos mostrar que as diferenças em nosso mundo estão diminuindo. Livia Mazocoli e Matheus Salgado Juiz de Fora, MG CLEO PIRES No caminho de Anitta e outras do ramo, Cleo Pires acredita que basta ter um bumbum e um corpinho sarado e está tudo resolvido. Ainda bem que essas personagens têm vida curta (“Acabou a brincadeira”, Amarelas, 28 de março). Celia R.B. Putini São Paulo, SP Bela entrevista! Cleo herdou muito talento artístico de seus pais (Fábio Jr. e Gloria Pires). Sucesso a ela na nova carreira. Ornar W. Santos São Paulo, SP PARA SE CORRESPONDER COM A REDAÇÃO DE VEJA As cartas para VEJA devem trazer a assinatura, o endereço, o número da cédula de identidade e o telefone do autor. Enviar para: Diretor de Redação, VEJA - Caixa Postal 11079 - CEP 05422-970 - São Paulo - SP; Fax: (11) 3037-5638; e-mail: veja@abril.com.br. Por motivos de espaço ou clareza, as cartas poderão ser publicadas resumidamente. Só poderão ser publicadas na edição imediatamente seguinte as cartas que chegarem à redação até a quarta-feira de cada semana. _______________________________________ 2# SEÇÃO II 2018.04.04 2#1 IMAGEM DA SEMANA – AS VÍTIMAS SOB ATAQUE 2#2 CONVERSA – PAULO RAMOS – “A PIPA IGUALA” 2#3 DATAS 2#4 SOBEDESCE 2#5 A LISTA – CINCO EFEITOS DA INFLAÇÃO BAIXA NO BOLSO DOS BRASILEIROS 2#6 HUMOR – SENSACIONALISTA 2#7 RADAR 2#8 VEJA ESSA 2#1 IMAGEM DA SEMANA – AS VÍTIMAS SOB ATAQUE A ESTUDANTE Samantha Fuentes, de 18 anos, é uma sobrevivente do ataque a tiros que matou dezessete pessoas em uma escola em Parkland, na Flórida, em fevereiro. Sobrevivente, mesmo: ela foi baleada nas pernas e ainda carrega nos ossos da face os estilhaços de um projétil que atingiu uma parede ao seu lado. No sábado 24, Samantha encarou o seu trauma e assumiu o microfone perante mais de meio milhão de manifestantes reunidos em Washington, a capital dos Estados Unidos, para discursar a favor de um controle mais estrito das armas de fogo no país. “Legisladores e políticos vão gritar: ‘O problema não são as armas’. Mas eles não são sequer capazes de me olhar nos olhos”, disse Samantha. Em seguida, ela passou mal e vomitou no palco, diante da multidão e das câmeras de TV, tal o seu nervosismo. Samantha e outros sobreviventes do massacre em Parkland transformaram sua dor em ativismo e conseguiram um feito histórico: a Marcha por Nossas Vidas, como foi chamado o protesto em Washington e em outras dezenas de cidades, acabou sendo a maior mobilização de rua da juventude americana desde as manifestações contra a Guerra do Vietnã, no fim dos anos 1960. O protagonismo já está cobrando seu preço: de vítimas de um atirador munido com um AR-15, os alunos de Parkland tornaram-se alvo da difamação na internet. Defensores do direito ao porte de armas apelaram para uma fotomontagem em que outra sobrevivente, Emma González, de 18 anos, rasga a Constituição americana. David Hogg, de 17, foi acusado de não estar na escola no dia do massacre. Estava, e há vídeos para provar. Provações não faltam para esses jovens. Diogo Schelp 2#2 CONVERSA – PAULO RAMOS – “A PIPA IGUALA” O deputado estadual do PDT defende a lei que transformou o brinquedo em patrimônio cultural do Rio de Janeiro. Com tantos fatos graves se desenrolando — a intervenção federal e a violência diária —, o senhor não acha que foi um momento inoportuno para o governador Pezão sancionar a sua Lei da Pipa? Apresentei o projeto antes da intervenção e tive o azar de a lei ser sancionada semanas antes da morte da vereadora Marielle Franco. Mas isso não tem nada a ver como atual momento do Rio. A pipa está enraizada na vida das pessoas, especialmente as da classe operária e as dos subúrbios. A pipa iguala, não há preconceito nem classe social envolvidos. Num festival de pipa, sabe qual a comida servida? Qual? Caldo de cana, pastel e churrasco. A pipa é uma espécie de resgate da cidadania. Ela confraterniza, aproxima, é presencial, além de trazer uma alegria muito grande. A pipa resiste. Ela hoje é do povão, o esporte do pobre. Como o senhor teve a ideia da lei? Foi ao ver, nas férias escolares, pessoas em muitos lugares, e de diversas idades, empinando pipa. É uma tradição que precisa ser mantida. Não só no Rio, mas no país, porque é um lazer do brasileiro. Então o senhor tem planos de transformá-la em patrimônio nacional? Tenho. Fizemos um levantamento em vários estados com um número relevante de apreciadores de pipa. De onde vem essa obsessão pela pipa? Desde muito pequenos, eu e meu irmão éramos os maiores vendedores de pipa da comunidade em que morávamos. Complementávamos a renda familiar com o dinheiro das vendas. Confesso que nunca fui bom em empinar: era melhor na venda — e na bola de gude. Minha infância foi completamente diferente da que se vê hoje. O avanço tecnológico está desumanizando as pessoas. As crianças não têm mais bola de gude nem pião. O combate é virtual, pelo videogame. Eduardo F. Filho 2#3 DATAS A INCLUSÃO PELA MÚSICA A história de José Antonio Abreu renderia um filme sentimental na televisão venezuelana. O enredo: idealista percorre a periferia de Caracas disposto a ensinar música erudita às crianças — um caminho eficiente, segundo ele, para a inclusão social. O sonho de Abreu começou com doze alunos enclausurados num estacionamento, em 1975. Passadas décadas, El Sistema, o projeto do economista e maestro diletante, pôs mais de 1 milhão de crianças venezuelanas em contato com o mundo erudito. Seu método de educação foi exportado para sessenta países, inclusive o Brasil, onde tem ramificações em São Paulo (a Sinfônica de Heliópolis), Rio (a Sinfônica de Barra Mansa) e Bahia (a Neojibá). De El Sistema, ascendeu um dos maiores pop stars da regência contemporânea — Gustavo Dudamel, de 37 anos, o atual diretor artístico da Orquestra Sinfônica Simón Bolívar, menina dos olhos de Abreu, e, desde 2009, da Filarmônica de Los Angeles. Nascido em 1939, na cidade de Valera, Abreu conduziu seu projeto musical com a ajuda do governo. De início, manteve uma postura apolítica e apartidária. O projeto sobreviveu a sete governos sem sofrer ingerências. O chavismo, no entanto, mudou o jogo. Hugo Chávez premiou o sonho de Abreu com 29 milhões de dólares anuais. Em contrapartida, as orquestras de El Sistema participaram de bom grado das campanhas bolivarianas. O adesismo tornou-se comprometedor no governo de Nicolás Maduro, sucessor de Chávez. Abreu e Dudamel foram criticados pelo silêncio diante da repressão a manifestantes de oposição e pelo esforço de convencer o governo a construir uma sala de concertos em Barquisineto, cidade natal do maestro, em meio à devastadora crise econômica. El Sistema acabou maculado pela cumplicidade com o regime. Abreu morreu no sábado 24, aos 78 anos, de causas não reveladas — fazia tempo que sua saúde inspirava preocupação. A morte do educador foi lamentada por Maduro. “Estamos emocionados com a morte do maestro Abreu”, disse o ditador venezuelano num pronunciamento na TV. SÍMBOLO DE LUTA Oliver Brown estava razoavelmente confortável com a educação que sua filha Linda, de 8 anos, recebia numa escola pública em Topelca, no Kansas. Preocupava-se, porém, com a distância que a menina percorria entre sua casa e o ponto de ônibus mais próximo. Ao descobrir que existia um colégio vizinho, decidiu matriculá-la ali. Era 1951, e nos Estados Unidos imperavam leis segregacionistas. Oliver e Linda eram negros e o novo colégio permitia somente o ingresso de brancos. A família Brown travou uma briga judicial para revogar o impedimento. Em 1954, três anos depois, conseguiu-se a extinção da segregação racial nas escolas públicas, em um caso cujo desfecho abriu caminho para o fim das leis racistas. Em 1988, Linda incentivou sua irmã, Cheryl, a criar a Fundação Brown, dedicada à briga pela igualdade racial. Ela morreu no domingo 25, aos 75 anos, de causa não divulgada. OUVIDO PARA SUCESSOS O faro do produtor musical gaúcho Carlos Eduardo Miranda, ou simplesmente Miranda, era extraordinário. Ele lançou bandas brasileiras de renome como Raimundos, Skank e Mundo Livre S.A. Nos últimos anos, ganhou fama como jurado em programas do SBT, como Ídolos (2006). Morreu na noite de quinta-feira 22, um dia depois de completar 56 anos, vítima de um mal súbito, em São Paulo. 2#4 SOBEDESCE SOBE BRASIL NA ONU - O Itamaraty conseguiu antecipar em onze anos, para 2022, a entrada do Brasil na vaga rotativa de latino-americanos no Conselho de Segurança da ONU. A mudança deu-se graças a Honduras, que abriu mão de sua vez. FACEBOOK - As ações da empresa subiram 1% depois que Mark Zuckerberg anunciou medidas para ajudar a proteger a privacidade dos usuários. Só 1%. ÁUDIO NO WHATSAPP - Um aplicativo para o Android converte em texto mensagens de voz enviadas pelo canal — práticas para quem manda, muitas vezes inconvenientes para quem recebe. DESCE BRASILEIROS EM PORTUGAL - Universidades portuguesas vêm cobrando mensalidades mais altas de brasileiros, contrariando tratado que prevê direitos iguais para cidadãos dos dois países. H&M - A pilha de roupas não vendidas do gigante da moda já soma 4,3 bilhões de dólares, segundo a empresa. O mau desempenho da marca no comércio virtual é uma das causas do problema. JEITO FRANCÊS - Um garçom demitido no Canadá por comportamento “agressivo e rude” prestou queixa contra o restaurante: alega que é apenas francês” e que sua demissão configura discriminação cultural. 2#5 A LISTA – CINCO EFEITOS DA INFLAÇÃO BAIXA NO BOLSO DOS BRASILEIROS • Alimentos mais baratos O índice que baliza a inflação, o IPCA, vem renovando suas mínimas históricas. A queda no preço de produtos como arroz (10,9%), feijão (46,1%), frango (8,7%) e leite (8,4%) em 2017 beneficia, sobretudo, as classes D e E, em cujo orçamento os alimentos têm peso maior. • Maior possibilidade de renegociação de aluguel Os contratos de aluguel têm como base a inflação medida pelo IGP-M — que caiu 0,52% em 2017. A queda do índice aliada ao número de imóveis vagos no país, que chega a 6 milhões segundo o IBGE, facilita a renegociação para os inquilinos que creem estar pagando mais do que deveriam. • Menor reajuste nas tarifas de transporte e energia No fim de 2016, as tarifas de ônibus subiram 9,3%. No mesmo período de 2017, aumentaram apenas 4%. No caso dos trens e metrôs, a oscilação também foi menor — de 8,5% para 2,5% e de 9,1% para 1,3%. Já os preços da energia baixaram 4,7% neste ano graças à saída da bandeira tarifária vermelha. • Aumento do poder de compra Em 2015, houve queda de 5% da renda média calculada pelo IBGE. A partir de 2016, deu-se uma leve recuperação. Em janeiro de 2018, quando o IPCA registrou seu menor patamar para o mês desde a criação do real (0,29%), a renda média do brasileiro subiu 3,6% em relação ao ano anterior • Menor margem para aumento salarial A baixa inflação não traz só vantagens. Ainda que o aumento das remunerações seja negociado em acordos coletivos com empregadores, e não automaticamente fixado com base no IPCA, a queda do índice tende a diminuir a margem dessa negociação para os assalariados. 2#6 HUMOR – SENSACIONALISTA Isento de verdade DEMOCRACIA É INTERNADA APÓS SER ATINGIDA POR TIROS CONTRA CARAVANA DE LULA A democracia estava sentada em um dos bancos de trás do terceiro ônibus da caravana de Lula — meio esquecida pelos participantes da caravana do PT, diga-se de passagem. Ainda assim, os tiros endereçados ao partido e seu líder a atingiram em cheio, ferindo também a civilidade e o respeito às instituições, que estavam acomodados ali por perto. Governador de São Paulo e pré-candidato do PSDB, Geraldo Alckmin foi a público declarar que “o PT colhe o que planta”. Apesar da falta de bom-senso da frase, muita gente levou em conta sua opinião; afinal, quem é picolé de chuchu deve entender de agricultura. O prefeito João Doria disse que não queria “ovos, mas cadeia para Lula”, esquecendo-se de que não foram ovos, mas tiros. Assessores explicaram que ele está sob o efeito da proximidade da Páscoa. PETISTA CANCELA NETFLIX MAS ABRE OUTRA CONTA EM NOME DE LARANJA THE MECHANISM A Policia Federal está investigando o uso de laranjas por petistas que cancelaram a Netflix mas abriram outra conta em nome de terceiros. O boicote ao serviço começou por causa da série O Mecanismo. A obra atribui a Lula a frase sobre o grande acordo envolvendo o Supremo, dita por Romero Jucá. Os investigadores já descobriram que o próprio Lula tem Netflix em casa. A assessoria do ex-presidente diz que a conta é de um amigo. O diretor José Padilha se defende dizendo que a série se inspirou na realidade, mas é ficção. Críticos dizem que a obra poderia ter um final feliz, com Aécio também sendo preso. Pelo menos na ficção. SEGUNDA TEMPORADA DE O MECANISMO TERÁ DILMA COMO TÉCNICA DA SELEÇÃO DO 7 A 1 A sequência de O Mecanismo vai causar ainda mais revolta do que a primeira temporada. A ex-presidente Dilma Rousseff vai aparecer à beira do gramado, como técnica, passando instruções aos jogadores pouco antes da derrota por 7 a 1 contra a Alemanha. Em outra cena, Dilma se reúne com especialistas da Cambridge Analytica e usa os dados do Facebook para influenciar as eleições americanas. Mas nada será tão chocante quanto a revelação de que a ex-presidente é a voz secreta do gemidão do zap. MEIRELLES DEIXARÁ A FAZENDA PARA DISPUTAR A PRESIDÊNCIA COM A MARGEM DE ERRO A margem de erro está na frente de Henrique Meirelles na disputa pela Presidência. Enquanto ela tem 3%, o ministro continua empacado em 1%. Meirelles, porém, está na frente da inflação mensal, seu maior cartão de visita. Os marqueteiros têm feito testes na imagem do ministro. Nas pesquisas, eleitores comentam que até um guarda-chuva tem mais carisma que Meirelles. O desempenho do ministro, porém, não desanima a equipe. “Temos convicção de que ele vai disparar e chegar a 2%”, disse um assessor. FRASE DA SEMANA “Que tiro foi esse?” Lula GURU HÚNGARO AFIRMA: “SUA TV TEM UM FANTASMA. E NÃO ESTOU FALANDO SÓ DA IMAGEM RUIM” LÁSZLÓ GÁBOR RECEBEU O SENSACIONALISTA NO HOTEL ONDE ESTÁ HOSPEDADO, em São Paulo. “Szia!”, exclama, explicando depois que se trata de “olá” em sua língua. O televisor visivelmente havia sido retirado e o frigobar estava quase vazio. O húngaro natural de Tatabánya, 12ª cidade mais populosa do país, é um homem de fala rápida e um pouco confusa, mas parece ter boas intenções. Na saída, nos ofereceu uma experiência retroenergética individual, mas achamos melhor não aceitar. De que forma os televisores acumulam energia negativa? Monitores de TV são espelhos energéticos e, se transmitiram naquela casa momentos dramáticos, eles acumularam negatividade. Minhas primeiras pesquisas, há décadas, já mostraram que terrenos ricos em cristais multiplicam efeitos da retenção retroenergética. Entende? Não. O senhor poderia explicar com palavras mais fáceis? Claro! Veja bem: monitores de TV são espelhos energéticos e, se transmitiram naquela casa momentos dramáticos, eles acumularam negatividade. Minhas primeiras pesquisas, há décadas, já mostraram que terrenos ricos em cristais multiplicam efeitos da retenção retroenergética. Entende? Não, mas passemos à próxima pergunta: qual sua formação acadêmica? Comecei a faculdade de geologia, obrigado por meu pai, mas larguei pela metade e decidi viajar pela Hungria medindo a temperatura de fontes termais para relacioná-la com o índice de felicidade de populações próximas. Foi quando descobri o “fator cristal”: terrenos mais ricos em cristais sofrem mais o efeito da retenção retroenergética. Seus pais devem ter ficado orgulhosos. Não exatamente. Meu pai dizia a todos que eu tinha largado a faculdade para nadar e jogar bola com estranhos às custas dele. Mas, graças a minha ousadia, o mundo conta agora com minhas descobertas. A retroenergética está sendo cada vez mais aceita no mundo, e o Brasil tem sorte de eu estar voltando minha atenção para este país. Eu poderia, por exemplo, estar pesquisando a negatividade americana que levou à eleição do Trump. Mas preferi o Brasil. Por que escolheu o Brasil? Minha mulher, Zsa Zsa, desapareceu no terremoto de 2011 na Hungria. Após três dias sumida, eu a encontrei no quarto de meu melhor amigo, um brasileiro que morava na Hungria. Ela se separou de mim para ficar com ele, mas acredito que a retroenergética esteja por trás disso também. Mas o Brasil venceu a Alemanha no último jogo. Eu insisto: brasileiros, não se deixem enganar com a vitória de 1 a 0 no amistoso contra a Alemanha. A negatividade não se manifesta fora de jogos oficiais. Troquem seus televisores! TVS QUE EXIBIRAM O 7X1 ACUMULARAM ENERGIA NEGATIVA DAS PESSOAS UM GURU HÚNGARO acredita ter encontrado numa pesquisa científica uma má notícia para a seleção e para os brasileiros. Televisores e Copas do Mundo estão na origem da vida de László Gaból. Seu pai, engenheiro, e sua mãe, a astróloga e dançarina Irenke. se conheceram em 4 de julho de 1954. Para quem não lembra: foi o dia em que a Hungria perdeu para a Alemanha a Copa do Mundo daquele ano. A derrota de virada por 3 a 2 foi considerada uma tragédia nacional. Alguns anos depois, a mãe de Gabór não conseguia engravidar. Irenke resolveu fazer uma análise energética da casa e concluiu que ondas negativas vinham do televisor de seu pai, no qual haviam visto a derrota de 1954. Assim que se desfizeram dele, Irenke engravidou. Ao ouvir essa história desde criança, o pequeno László se interessou pelo tema das propriedades energéticas dos objetos e passou a estudá-las a fundo. Agora, ele afirma que os aparelhos de TV que exibiram a goleada alemã no Brasil estão carregados de energia negativa. A única solução: uma troca de aparelhos em massa. De acordo com ele, o movimento da energia da seteaumzite já começou. Coisas estranhas, como fissuras no quinto metatarso, que ninguém nem sabia que existia, são a prova de que a maldição está em curso. O guru húngaro ensina o que fazer: “A tv-jének szelleme van. És nem a rossz képrôl beszélek. Ez a hét-egy kisértet. Meg kell változtatni”. *Traduzido do húngaro: É, sua TV está com fantasma. E não estou falando da imagem ruim. É o fantasma do sete a um mesmo. Tem que trocar” POLÍCIA PEDE PARA NÃO JOGAR TV VELHA PELA JANELA CIENTE Dos ESTUDOS de Gábor, a polícia brasileira já recomendou que as pessoas não se desesperem e joguem seus antigos aparelhos de TV pela janela. “Isso pode ser literalmente uma dor de cabeça”, adverte o delegado Benjamin Dutra. Já o médium cearense Zezé Cavalcanti, que diz ter previsto a ida do homem à Lua e o naufrágio do Titanic, embora tenha nascido em 1981, acusa László Gábor de charlatanismo. “Vixe, que ele vá aperrear o povo da terra dele!” 2#7 RADAR Mauricio lima NA SURDINA Além de visitas espalhafatosas, como a da última quinta, a PF vem realizando operações de menor porte, sem alarde. As “incursões secretas”, que incluem o entorno dos políticos, são feitas a pedido de Raquel Dodge. AGORA VAI A propósito, a conclusão do acordo com a OAS é uma das prioridades da equipe de Dodge. As conversas avançaram muito e serão levadas ao STF. ACHEI! Na barafunda de seus milhares de e-mails, Marcelo Odebrecht localizou os 77 milhões de reais de “bônus” recebidos por Newton de Souza, futuro presidente do conselho da empreiteira. Estão no banco suíço Pictet A PRESSÃO FUNCIONOU Embora viesse recebendo ameaças há cerca de um ano, Edson Fachin tratou do caso publicamente apenas agora para que Cármen Lúcia autorizasse o reforço de sua segurança e de sua família no Paraná. Como se sabe, ela deu o benefício. TEMPOS SOMBRIOS Na cadeia há um ano e meio, Eduardo Cunha acumula dívidas. Por falta de pagamento, a Light, concessionária de energia do Rio, cortou a luz das salas que ele mantém no Centro da cidade. ALUNO APLICADO Mesmo com uma adega lotada de Château Pétrus, Joesley Batista aderiu à escola Cunha de autodefesa. Desde que deixou a cadeia, passa longas horas estudando seus processos. PAPA-TUDO Geddel Vieira Lima já perdeu quase 10 quilos durante a temporada no cárcere — e olha que ele pega pesado na cantina da Papuda. Sua “dieta” inclui pizzas, pamonhas e salgadinhos. JOGO DE CENA Nada convence Fernando Henrique Cardoso de que Michel Temer será candidato (ainda mais com uma nova denúncia à vista). Ele lembra que, historicamente, o MDB abandona seus postulantes a presidente, como ocorreu com Ulysses Guimarães e Orestes Quércia. RUSGA NO NINHO No entorno de João Doria, FHC vem sendo chamado de “Pelé” da política. “O melhor dentro de campo, mas um péssimo comentarista fora dele.” “MEU CANDIDATO” Além de Romero Jucá, outro aliado de Temer que demonstra alguma predileção pelo nome de Henrique Meirelles à Presidência é Eliseu Padilha. Nos encontros que eles têm, Padilha o chama carinhosamente de “meu candidato”. RUMO AO BILHÃO Eunício Oliveira está prestes a ficar 450 milhões de reais mais rico. O presidente do Senado negocia a venda de sua empresa de transporte de valores a um grupo estrangeiro. REBAIXADO Atual ministro do Trabalho, Helton Yomura voltará a ser secretário executivo da pasta. O PTB vai escolher outro nome para oposto. PROCURA-SE UM CFO A JBS entrevistou quinze nomes para ocupar a vaga de CFO da companhia. Entre eles, Ivan Monteiro, da Petrobras. Nessa primeira leva, ninguém topou. O BANQUEIRO ROQUEIRO A turma do Pearl Jam, que veio ao Brasil recentemente, ficou unha e carne com André Esteves. Entre as apresentações no Rio e em São Paulo, eles visitaram o Pantanal no jato do banqueiro. VENDENDO SAÚDE Duas aberturas de capital de empresas de saúde vão disputar a atenção do mercado em breve. São a Hapvida e a Intermédica. É coisa de 3 bi. BANDIDOS DE GRAVATA Os delegados Márcio Anselmo e Jorge Pontes, ex-Interpol, estão finalizando um livro sobre o crime organizado no país. Na obra, que sairá pela editora Objetiva, no segundo semestre, os autores mostram como os bandidos se apossaram das instituições políticas. UM SHOW DE FAVELA O tema do próximo Rock in Rio, em 2019, será “favela”. A ideia é ter um espaço temático, dentro do evento, em que todos os funcionários sejam egressos de comunidades. Outras ações sociais vão acontecer em paralelo. NOTAS DIÁRIAS EM WWW.VEJA.COM Com Gabriel Mascarenhas 2#8 VEJA ESSA “Se o filme for bom, certamente merecerá um Emmy, mas não um Oscar.” - STEVEN SPIELBERG, ao defender a decisão dos organizadores do Festival de Cannes de tirar da competição as produções feitas por serviços de streaming, como a Netflix, que passam diretamente na televisão “Netflix não pode fazer campanha política. Vou falar para as lideranças políticas que eu encontrar. A direção da Netflix não está sabendo onde se meteu. Não vejo por que uma estrutura como aquela dar margem para isso.” - DILMA ROUSSEFF, em entrevista coletiva, reclamando da série O Mecanismo, de José Padilha, que, segundo ela, divulga “notícias mentirosas”, torcendo a realidade “Essa discussão é como se o sujeito entrasse na sua casa, estuprasse sua esposa, amarrasse seu filho, roubasse um isqueiro. A esquerda quer discutir o isqueiro, porque, se ela olhar para o macro, para o que aconteceu, não vai ter o que falar.” - JOSÉ PADILHA, respondendo a Dilma “Você está louca, querida.” - Resposta da própria NETFLIX, em postagem no Twitter, endereçada a Flavio Bolsonaro, filho de Jair, que sugeria a realização de um seriado sobre os Bolsonaros”. “Não tem fantasminha.” – TITE, tentando fazer o Brasil esquecer o imenso ectoplasma do 7 a 1 alemão na Copa de 2014. Na terça 27, a seleção ganhou da Alemanha por 1 a 0, em Berlim. Mas o fantasma continua a pairar “Você precisa ver nossos closets. Parece que ele gosta mais de moda do que eu. Acho que, em um ano, mudou mais de penteado do que eu a vida inteira.” - GISELE BÜNDCHEN, revelando à revista de estilo do Wall Street Journal que o marido, Tom Brady, é o fashionista da família “Historicamente a gente veio da costela de Adão, mas a costela protege os órgãos, a costela sustenta. Então é uma função que não desmerece a gente. Muito pelo contrário, coloca a gente numa condição de quem suporta e apoia. A gente não é mais sensível? Os hormônios não fazem a gente ficar mais sensível? Os homens não têm TPM...” - CLAUDIA LEITTE, numa histórica discussão sobre mercado de trabalho, no programa Encontro com Fátima Bernardes “O papa afirmou que as almas ruins não estão sujeitas a um castigo real. Elas recebem o perdão de Deus, enquanto aquelas que não podem ser perdoadas estão destinadas a desaparecer. O Inferno, em suma, não existiria. O que é certo, para o pontífice, é o desaparecimento de almas pecaminosas.” - EUGENIO SCALFARI, fundador do jornal italiano La Repubblica, ao relatar conversa com o PAPA FRANCISCO. Espalhada pelo mundo de modo resumido — o inferno não existe!”—, a frase provocou indignação. O Vaticano disse que a fala não pode ser considerada como transcrição fiel das palavras do Santo Padre” “O assassinato de Marielle mostra o declínio da democracia brasileira.” - BILL DE BLASIO, prefeito de Nova York, no Twitter ____________________________________________ 3# BRASIL 2018.04.04 3#1 GOVERNO – A MÁFIA DO PORTO 3#2 EXCLUSIVO – O ELO PERDIDO 3#3 JUSTIÇA – A SENHORA DO DESTINO 3#4 POLÍTICA – TEMPOS OBSCUROS 3#5 DORA KRAMER – A QUEM INTERESSA 3#6 CRIME – TRAGÉDIA PELO WHATSAPP 3#1 GOVERNO – A MÁFIA DO PORTO Com a prisão de amigos e ex-assessores do presidente Temer, a investigação sobre as propinas portuárias chega perigosamente perto do Palácio do Planalto. DANIEL PEREIRA E HUGO MARQUES O e-mail abaixo, enviado por Celso Grecco ao pessoal da Rodrimar em 16 de maio de 2017, prova que sua empresa se beneficiou, sim, do decreto presidencial “Consideramos que o novo decreto é valioso no que diz respeito à reivindicação de reequilíbrio econômico do Terminal Pérola. As principais mudanças incluem a expansão dos termos do contrato e flexibilidade para ampliar os contratos existentes. Os parágrafos 2, 19 e 24 do novo decreto apoiam e fortalecem o objeto de reivindicação do Terminal Pérola na Secretaria de Portos e na Agência Nacional de Transportes Aquaviários.” De nada adiantou a tentativa do governo de intimidar o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso, relator do inquérito que apura se empresas pagaram propina em troca de um decreto sobre portos assinado pelo presidente Michel Temer. Por decisão de Barroso, a Polícia Federal prendeu na quinta-feira 29 o advogado José Yunes e o coronel João Baptista Lima Filho, ambos velhos amigos de Temer e suspeitos de atuar como laranjas do presidente. A PF também prendeu Wagner Rossi, que presidiu a Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp) com aval de Temer, e o empresário Antonio Celso Grecco, dono da Rodrimar, empresa suspeita de distribuir propina a assessores presidenciais em retribuição à edição do decreto. Houve ainda ordem de prisão contra quatro acionistas do Grupo Libra, que já teve diversos de seus interesses na área de portos atendidos por aliados do presidente. O cerco judicial está se fechando, e a leva de prisões é um indicativo de que o presidente Temer pode enfrentar uma nova denúncia antes de disputar a reeleição. Com influência notória na área de portos desde a década de 90, Temer nega a acusação de recebimento de propina e alega que o decreto dos portos não beneficiou a Rodrimar. Em linha com o Palácio do Planalto, a própria empresa diz que a medida não a favoreceu. “Quero saber os motivos da prisão. Tenho certeza de que, se isso não for tratado com sensacionalismo, não enfraquecerá o governo, porque o presidente Temer não tem nada a ver com isso. O decreto dos portos não beneficia a Rodrimar”, disse o ministro da Secretaria de Governo, Carlos Marun, o mesmo que ameaçou apresentar pedido de impeachment contra Barroso. VEJA teve acesso a uma mensagem do empresário Celso Grecco que desmente essas versões. Em e-mail enviado a funcionários e advogados da empresa em 16 de maio de 2017, seis dias depois da edição do texto sobre portos, Grecco comemora: “Consideramos que o novo decreto é valioso no que diz respeito à reivindicação de reequilíbrio econômico do Terminal Pérola”. A Rodrimar é uma das donas do Terminal Pérola, que apresentou um pedido de reequilibrio contratual ao Ministério dos Transportes. O pleito está sob a avaliação da área técnica, segundo a assessoria da pasta, que disse ser impossível estimar, neste momento, quanto a empresa ganhará caso tenha sua demanda atendida. No mesmo e-mail, Celso Grecco reforça o entendimento de que a Rodrimar se beneficiou do decreto: “As principais mudanças incluem a expansão dos termos do contrato e flexibilidade para ampliar os contratos existentes. Os parágrafos 2, 19 e 24 do novo decreto apoiam e fortalecem o objeto de reivindicação do Terminal Pérola na Secretaria de Portos e na Agência Nacional de Transportes Aquaviários”. Diante desse e-mail, cai por terra a versão pública da própria empresa de que não colheu nenhum proveito do decreto. A Rodrimar é personagem central no inquérito dos portos. Um dos executivos da empresa tratou pessoalmente do teor do decreto com o então assessor da Presidência, Rodrigo Rocha Loures, que ficou famoso por correr pelas ruas de São Paulo puxando uma mala com 500.000 reais de propina paga pela JBS. Rocha Loures também conversou sobre o conteúdo do decreto com o próprio Temer por telefone. Em sua defesa, o presidente alega que a principal reivindicação da Rodrimar — que era prorrogar seus contratos portuários firmados antes de 1993 — não foi atendida pelo governo ao elaborar o decreto. Mas, apenas quinze dias depois da entrada em vigor das novas regras, a Rodrimar pediu ao ministério a prorrogação do contrato do Terminal Pérola, assinado antes de 1993. O pedido da empresa não foi atendido, como diz Temer, mas também não foi recusado e, de acordo com o Tribunal de Contas da União, o decreto dos portos de Temer abre brecha, sim, para que contratos anteriores a 1993 sejam efetivamente prorrogados. Diz o relatório produzido pela área técnica do TCU: “Nada obstaria futuros alargamentos de vigência contratual via edição de atos unipessoais do chefe do Poder Executivo, o que acarretaria, na prática, a existência de contratos administrativos com prazo indeterminado, o que é vedado pela legislação”. O chefe do Poder Executivo, não custa lembrar, é o presidente Temer. “No mesmo raciocínio, também não haveria óbice para que as extensões de prazo fossem autorizadas aos arrendatários de terminais concedidos antes da Lei 8630/1993.” É isso que explica a comemoração de Celso Grecco em seu e-mail. Além do Terminal Pérola, a Rodrimar opera três outros terminais. A empresa já pediu a prorrogação dos contratos de dois deles, ambos firmados depois de 1993. Com base no decreto dos portos, 114 empresas solicitaram a “adaptação” contratual, mas, graças à intervenção do TCU, as decisões só serão tomadas depois de dissipadas as suspeitas de ilegalidades em tomo do decreto de Temer. O Grupo Libra, por exemplo, quer a prorrogação de suas operações em Santos e no Rio de Janeiro. Quatro donos da empresa — Ana Carolina, Gonçalo, Celina e Rodrigo Torrealba — tiveram a prisão decretada. A sede do grupo foi alvo de busca e apreensão. Em reportagem publicada recentemente, VEJA revelou mensagens nas quais o coronel João Baptista Lima Filho ajuda Gonçalo Torrealba a marcar uma audiência na Secretaria de Portos. Suspeito de ser laranja de Temer, Lima informa o presidente de que a audiência solicitada por Torrealba fora agendada, como quem cumpre uma missão: “Transmiti o recado”. A troca de mensagens ocorreu em agosto de 2015. Na época, a Secretaria de Portos ainda não havia decidido sobre um pedido de prorrogação de contrato do Grupo Libra no Porto de Santos. Três semanas depois da intervenção do coronel, em 3 de setembro de 2015, a secretaria prorrogou os contratos do Libra por vinte anos, até 2035. A decisão foi assinada pelo então comandante da pasta, Edinho Araújo. indicado ao cargo por Temer. Até hoje, o Libra é a única empresa a ter seus contratos prorrogados mesmo sendo devedor da União. Sua dívida, discutida atualmente num processo de arbitragem, é de cerca de 2,8 bilhões de reais, segundo o próprio governo. Antes da canetada de Edinho Araújo, outro aliado de Temer, Eduardo Cunha, então líder do PMDB na Câmara, foi decisivo para que o pleito do Grupo Libra começasse a andar. Em 2013, durante a tramitação da MP dos Portos. Cunha incluiu uma emenda que previa a prorrogação de contratos mesmo para empresas devedoras, desde que elas concordassem em discutir seus débitos em processos de arbitragem, ou seja, fora da Justiça. Foi o que o Libra fez e, assim, se tornou o primeiro e o único beneficiário da emenda Cunha. Na campanha de 2014, dois acionistas do Libra doaram 500.000 reais cada um à campanha de Temer. Para a PF, o valor pode ser uma contrapartida às vantagens obtidas na MP dos Portos. Trocando em miúdos: a doação pode ter sido uma propina lavada na forma de doação registrada na Justiça Eleitoral. Temer nega qualquer irregularidade na arrecadação de sua campanha. Cunha está preso desde 2016 e Edinho Araújo, hoje prefeito de São José do Rio Preto, prestou depoimento à Polícia Federal na última quinta-feira, cujo conteúdo não foi divulgado. Diante das suspeitas da atuação criminosa do Grupo Libra e da Rodrimar no Porto de Santos, a PF resolveu desarquivar um inquérito sobre o mesmo assunto que contém planilhas e documentos juntados num processo de separação entre o economista Marcelo de Azeredo, ex-presidente da Codesp, administradora do Porto de Santos, e sua ex-companheira Érika Santos. O caso, publicado por VEJA em 2002, trouxe à tona um esquema de pagamento de “caixinhas” e “propinas” envolvendo os mesmos personagens enrolados na teia da Lava-Jato: Temer, o coronel Lima, a Rodrimar e o Grupo Libra. As empresas portuárias são acusadas de repassar dinheiro sujo para o presidente e seus amigos em troca de privilégios para operar os terminais. A Polícia Federal deve ouvir Érika Santos e Marcelo de Azeredo nas próximas semanas. Eles são considerados testemunhas relevantes para elucidar aquilo que, suspeita, seja uma nova máfia, desta vez incrustada na área de portos. VEJA conversou com Erika Santos, em Paris — como se pode ver na reportagem a seguir. 3#2 EXCLUSIVO – O ELO PERDIDO VEJA localiza a testemunha que as autoridades acreditam ser capaz de esclarecer a conexão entre o presidente Temer e as irregularidades no Porto de Santos. THIAGO BRONZATTO, de Paris A POLÍCIA FEDERAL e o Ministério Público tentam juntar as peças do quebra-cabeça que envolve uma grave suspeita contra o presidente Michel Temer: ele seria mentor e beneficiário do esquema de corrupção instalado há mais de duas décadas no Porto de Santos. A Lava-Jato já colheu depoimentos e indícios que convergem para um mesmo ponto: empresas pagaram milhões de reais em propina a políticos para garantir privilégios na operação de terminais portuários. O Supremo Tribunal Federal já decretou a quebra dos sigilos fiscal e bancário do presidente. Os empresários citados negam. Os políticos também negam. O presidente Temer afirma que nunca, nem antes nem depois de assumir o governo, moveu uma palha para ajudar quem quer que fosse nessa área. Mas as autoridades estão atrás de uma testemunha que pode mudar o curso da investigação — uma mulher que viu de perto a gênese do esquema, colheu documentos que provam sua existência desde a década de 90, sabe o nome dos personagens envolvidos e chegou até a ameaçar denunciá-los — mas, depois, fez um acordo, desistiu das acusações e desapareceu. VEJA a localizou. Segurando uma bolsa da grife italiana Gucci e vestindo um longo casaco branco com estampas florais da marca Heaven Please+, a blogueira de moda Érika Santos, a testemunha, caminhava apressada pela Avenida Champs-Élysées, em Paris, na tarde do dia 13 de março passado. Após almoçar no badalado restaurante Matignon e cortar o cabelo no spa Les Bains de Léa Paris, ela foi abordada pela reportagem de VEJA quando se dirigia à estação de metrô. Pela primeira vez em quase duas décadas, Érika falou do esquema de pagamentos de suborno que ela mesma denunciou vinte anos atrás. “Todo mundo já sabe a verdade há muito tempo”, disse. Que verdade? A blogueira se mostra incomodada com a pergunta: “Por que vocês não pegam a planilha e vão atrás? Não tenho o que falar mais sobre essa história” (veja a entrevista). Em 2001, Erika apresentou à Justiça uma planilha que, segundo ela, revelava a existência de um esquema de “caixinha e propina” no Porto de Santos. O documento mostrava supostos pagamentos de suborno de empresas a personagens identificados como “MT”, “MA” e “Lima”. O investigadores suspeitam que MT seja Michel Temer, MA se refira ao economista Marcelo de Azeredo e Lima corresponda ao hoje famoso coronel João Baptista Lima Filho, amigo do presidente e um dos presos na operação da quinta-feira 29. Antes de tornar-se blogueira de moda e desfrutar uma vida confortável na Europa, Erika morava numa casa simples em Sobradinho, cidade-satélite de Brasília. No fim da década de 90, ela conheceu o economista Marcelo de Azeredo. então presidente da Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp), administradora do Porto de Santos. Ela, estudante, tinha 20 anos. Ele, 35, gostava de dirigir carros importados, fazer viagens para o exterior e cultivava um bom trânsito político no PMDB paulista. Chegou a concorrer a uma vaga de deputado estadual pelo PMDB nas eleições de 1994, mas não foi eleito. Apaixonados, Érika e Marcelo resolveram morar juntos em São Paulo. O “conto de fadas”, nas palavras da própria Érika, acabou no momento em que ela teria sido agredida por ele. O caso foi parar na Justiça, com um pedido de separação litigiosa. Para provar que Azeredo tinha condições de lhe pagar uma pensão, Erika expôs a vida financeira do ex-companheiro, anexando ao processo uma planilha que, agora, quase vinte anos depois, desnuda as raízes de um escândalo federal. Os documentos mostram que o grupo Libra — que tem como sócio Gonçalo Torrealba, cuja prisão também foi decretada na quinta-feira — obteve a concessão de dois terminais do Porto de Santos só depois de desembolsar 1,28 milhão de reais em propina para o trio “MT”, “MA” e “Lima”. Desse valor, 640.000 reais foram destinados a “MT”, enquanto a outra metade foi rateada entre “MA” e “Lima”, de acordo com a planilha. Em outra transação listada na planilha, a empresa Rodrimar — mais uma operadora do porto, cujo dono, Antônio Celso Grecco, foi preso — repassou 600.000 reais para o trio. Há ainda anotações sobre outros contratos fechados com a Codesp. A empresa Argeplan, da qual o coronel Lima é atualmente um dos sócios, também aparece nas planilhas associada a porcentuais. Na época da separação litigiosa do casal, em 2001, VEJA publicou uma reportagem com os detalhes da denúncia, mas as investigações não evoluíram. “Nessa história só os mais fracos é que se prejudicam”, diz a Nogueira. Na ocasião, ao tomar conhecimento das acusações, o então deputado Michel Temer acionou o advogado Antonio Cláudio Mariz, o mesmo que hoje o defende na investigação do Porto de Santos. Temer ameaçou processar Erika, mas, depois de uma reunião entre as partes, o caso acabou sendo encerrado em um acordo extrajudicial cujos termos são desconhecidos. A blogueira demitiu seus antigos advogados, acusou-os de entregar as tais planilhas sem seu conhecimento, encerrou o processo de separação litigiosa com o seu companheiro, retratou-se e desapareceu. Em 2001, Temer disse a VEJA que, quando os rumores de corrupção no Porto de Santos surgiram, ele acionou o então ministro dos Transportes, Eliseu Padilha, atual chefe da Casa Civil, para resolver o problema. “Pedi que Azeredo (então companheiro de Érika) fosse substituído porque os comentários estavam prejudicando meu nome. Padilha tirou a diretoria e pôs outra, e tudo foi feito a meu pedido”, afirmou o então deputado, deixando claro quem era o mandachuva daquela área. Em discurso na Câmara, ainda naquela época, Temer chegou a elogiar a troca de comando no Porto de Santos: “Uma dessas modificações levou à presidência da Codesp o nosso ilustre companheiro deputado Wagner Rossi”. Ex-ministro da Agricultura nos governos Lula e Dilma, Rossi também foi preso na quinta-feira. Até hoje não se sabe o teor do acordo entre Erika, o marido e os advogados de Temer. O fato é que o pacto soterrou ocaso. A Polícia Federal ainda tentou investigar a denúncia da blogueira, intimou Temer três vezes a depor, mas ele nunca prestou esclarecimentos alegando que exercia o mandato de deputado federal e tinha direito ao foro privilegiado. A investigação, em razão disso, foi remetida ao Supremo Tribunal Federal, onde dormitou até ser arquivada, em abril de 2011, por determinação do ministro Marco Aurélio Mello. Com mais de quatro volumes de papelada, incluindo os documentos e as planilhas sobre o Porto de Santos, o caso ficou esquecido num escaninho da Justiça em São Paulo. Temer livrou-se de um embaraço, que agora ganha outra dimensão, e Erika reconstruiu sua vida como blogueira de moda no exterior. No despacho que determinou a prisão dos empresários, amigos e ex-assessores de Temer, o ministro Luís Roberto Barroso deixou claro o que está em jogo: “Há fortíssimos indícios de esquema contínuo de concessão de benefícios públicos em troca de recursos privados para fins pessoais e eleitorais, que persistiria por mais de vinte anos no setor de portos, vindo até os dias de hoje”. Por isso, Érika Santos voltou a ocupar um papel central na história, tanto que a Polícia Federal deverá ouvi-la nos próximos dias. O objetivo é entender se a Rodrimar e também o grupo Libra, cujos acionistas financiaram a campanha de Temer em 2014, pagavam propina ao presidente ou a algum de seus assessores desde a década de 90. Há três meses, a PF chegou a questionar Temer, em depoimento por escrito, sobre sua relação com Marcelo de Azeredo. Em suas respostas, porém, o presidente não deu nenhuma explicação. Disse apenas que indicou o nome do economista à presidência da Codesp, após consulta feita ao PMDB de São Paulo, e que jamais solicitou que o apaniguado intermediasse “interesse de qualquer espécie”. A VEJA, Erika confirmou que Marcelo de Azeredo e Temer eram amigos e costumavam encontrar-se com frequência. Em suas respostas por escrito à PF, Temer disse que Érika se retratara das acusações contidas nas planilhas entregues à Justiça e selara um acordo com o ex-presidente da Codesp, encerrando o litígio. A blogueira, por tudo isso, é considerada a testemunha que pode unir o passado e o presente no Porto de Santos, mas ela não parece ter disposição para fazê-lo. “Eu não vou expor ninguém agora”, disse Erika. “O Temer está aí, milionário. Está todo mundo milionário (...) As pessoas querem saber do Temer e de pessoas que estão milionárias, felizes da vida. E que nada vai acontecer com elas”, frisou a blogueira, enquanto se despedia da reportagem de VEJA e entrava no metrô. “Quem está impune está impune.” Poucos minutos depois, ela mandou um recado por uma rede social. Postou uma foto sua acompanhada de uma frase de autoria do psiquiatra Augusto Cury, o maior best-seller brasileiro da década: “O passado é uma cortina de vidro. Felizes os que observam o passado para poder caminhar no futuro”. “ESTÁ TODO MUNDO MILIONÁRIO” Érika Santos manteve silêncio por quase vinte anos. Em 2001, ela estava se separando do economista Marcelo de Azeredo, que foi presidente da empresa que administra o Porto de Santos, e resolveu denunciar um esquema do ex-companheiro com caixinhas” e propinas. Depois da acusação, formalmente apresentada à Justiça, ela acabou fazendo um acordo extrajudicial, cujos termos permanecem desconhecidos, e disse que a denúncia foi feita à sua revelia — o que é altamente improvável. Desde então, Érika nunca mais tocou no assunto. Agora, em conversa com o repórter Thiago Bronzatto em Paris, ela afirma que há muito tempo “todo mundo já sabe a verdade”. demonstra mágoa deter sido a única prejudicada” e diz que, com o ressurgimento do caso, teme prejudicar-se outra vez. A seguir, a conversa com VEJA. A senhora se tornou uma importante testemunha na investigação que apura se o presidente Michel Temer recebeu propinas de empresas que operam no Porto de Santos... Eu não vou expor ninguém agora. Todo mundo já sabe a verdade há muito tempo sobre tudo. Essa é uma história superantiga. Todo mundo já teve acesso a isso. Por que estão falando disso agora? A Polícia Federal pediu acesso às provas que a senhora entregou à Justiça em 2001, que revelam um suposto esquema de caixinhas e propinas” no Porto de Santos envolvendo Temer. Tá bom. Essa história é mais antiga que minha avó. A planilha revela repasses de dinheiro de empresas do Porto de Santos, e a polícia desconfia que os beneficiários sejam Temer, o coronel João Baptista Lima e o seu ex-companheiro Marcelo de Azeredo... Por que vocês não pegam a planilha e vão atrás? Por que tem que ser comigo? Não tenho o que falar mais sobre essa história... Depois de entregar a planilha à Justiça, a senhora acabou fazendo um acordo extrajudicial com seu ex-marido e desistiu do processo. Quais foram os termos do acordo? Não fui eu que entreguei aquela planilha. Os seus advogados daquela época disseram que foi a senhora que entregou a planilha... Imagina, eu não estava no Brasil. Eu estava em Los Angeles. Esse advogado entregou esse material sem a minha assinatura. Por isso é que, depois, retirei a ação. Eu não sei onde ele arrumou aqueles documentos. Alguém deve ter pago a ele. Não fui eu. Ele que montou um monte de documentos. Ele fez uma ação para me incriminar. Só me prejudicou. A senhora tinha conhecimento da participação de Temer e do seu ex-marido num esquema ilícito no Porto de Santos? Eu não posso falar. Como é que eu vou saber? Eles eram amigos. Jantavam juntos... Nesses jantares, alguma vez se ouviu menção a algum esquema clandestino? Claro que não. Eles iam falar isso na minha frente? Nada que motivasse uma suspeita da sua parte? Ele (Temer) é macaco velho. Eles eram macacos velhos. Seu ex-companheiro comentou alguma coisa sobre o Porto de Santos com a senhora? Eu era uma menina de 19 anos, casada com o Marcelo, que tinha dez anos a mais que eu... Nessa história, só os mais fracos é que se prejudicam... A senhora está disposta a revelar o que sabe para esclarecer essa investigação? Quem está impune está impune. Depois que me separei, fui trabalhar como vendedora de loja. Fui fazer a minha carreira sozinha, sem ajuda de ninguém. E cada vez que essa história começa a reaparecer ou me mandam embora ou me prejudicam. A senhora foi prejudicada? Eu fui a única prejudicada nessa história. O Temer está aí, milionário. Está todo mundo milionário. Meu pai morreu, minha mãe é paralítica e está em cadeira de rodas. Sou eu que cuido dela, Eu me separei do Marcelo sem praticamente nada. Nem minhas roupas ele queria devolver. De lá para cá, foram muitos anos de trabalho para eu estar aqui hoje. Mas isso não interessa para ninguém. As pessoas querem saber do Temer e de pessoas que estão milionárias, felizes da vida. E nada vai acontecer com elas. 3#3 JUSTIÇA – A SENHORA DO DESTINO O voto de Rosa Weber vai definir o futuro do ex-presidente Lula, da Operação Lava-Jato e da própria Justiça LARYSSA BORGES E GABRIEL CASTRO A MINISTRA Rosa Weber, de 69 anos, só fala nos autos. Ao contrário de alguns de seus colegas de Supremo Tribunal Federal (STF), ela não dá entrevista, não debate política em público e não mantém contato, fora da agenda de trabalho, com partes interessadas nos processos. É uma juíza no estilo tradicional. Há pouco mais de seis anos no tribunal, já atuou em processos de grande repercussão, mas quase sempre como coadjuvante. Nesta quarta-feira 4, fará sua estreia como protagonista — e justamente no julgamento do habeas-corpus ajuizado pela defesa do ex-presidente Lula, que pretende evitar sua prisão imediata no caso do tríplex do Guarujá. Dos onze ministros do STF, cinco já deram sólidos indícios de que são a favor do recurso do petista e cinco mostraram claramente que são contra. Caberá a Rosa Weber desempatar a questão para um lado ou para o outro. Não se trata apenas de um desempate. Está nas mãos da ministra decidir sobre o destino do líder da corrida presidencial e, também, da maior operação de combate à corrupção da história do país. A Lava-Jato, afinal, só ganhou enorme dimensão porque os condenados em segunda instância estão indo para a cadeia — e o risco de prisão levou a maioria dos acusados a selar acordos de delação, o que deu impulso inédito à investigação. Derrubar a autorização de prisão em segunda instância significa adiar a cadeia para as calendas gregas, desestimular as delações — e, assim, enterrar a essência da Lava-Jato. Se o veredicto do STF for favorável a Lula, estará aberto o caminho para livrar da cadeia todos os outros em situação semelhante — como o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, também condenado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4). Além disso, tornará incerto o encarceramento de outros figurões, como os ex-ministros Antonio Palocci e José Dirceu, prestes a ser sentenciados em definitivo em segunda instância. A VEJA, Deltan Dallagnol, chefe da força-tarefa da Lava-Jato em Curitiba, fez a seguinte avaliação: “O Supremo poderá colocar uma pá de cal sobre a esperança de realmente alcançarmos justiça na Lava-Jato e em outras grandes investigações. Fulminará os resultados da operação não apenas porque vários réus serão soltos, mas porque a prisão de todos será atrasada por mais de década, até não se sabe quando, com grandes chances de alcançarem a impunidade pela prescrição”. A própria eficácia do sistema judicial, por isso, seria comprometida, a depender da decisão desta quarta-feira. Na semana passada, o TRF4 rejeitou os últimos recursos da defesa de Lula, consolidando sua condenação na segunda instância. Em tese, está tudo pronto para que a prisão seja efetivada. Para os leigos, é difícil entender por que essa discussão ainda persiste, considerando que Lula já foi condenado por nove juízes — todos, sem uma única exceção — que analisaram seu caso (veja artigo de J.R. Guzzo). No entanto, entre os ministros do STF há os que têm argumentos jurídicos a favor da liberdade de Lula e outros que têm argumentos jurídicos, igualmente sólidos, a favor da prisão de Lula. Tudo depende da interpretação que se dá ao princípio da presunção da inocência inscrito na Constituição. Daí por que a decisão é uma incógnita. Desde 2016, o Supremo vem autorizando a chamada antecipação da pena. O efeito pedagógico está registrado em números. Em 2015, antes da decisão do STF, a Lava-Jato fechou 46 acordos de colaboração. Já no primeiro ano depois da mudança de entendimento, foram 104 acordos. Nos últimos meses, ministros derrotados no julgamento de 2016 lançaram uma ofensiva para que o STF volte atrás. A presidente do tribunal, Cármen Lúcia, comprometeu-se a não pautar o assunto, mas cedeu e levou a plenário a questão individual de Lula. A ala de ministros que quer impedir a prisão antecipada propõe uma solução intermediária: o cumprimento da pena se daria apenas depois de decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Ou seja: em vez de prender com condenação em duas instâncias, só se prenderia com condenação em três instâncias. Seria apenas um degrau a mais no rito processual. O problema é o tempo que se leva para dar essa pequena escalada. Um ministro do STF, ouvido sob a condição de anonimato, estima que as bancas de advocacia consigam postergar o desfecho de um caso penal no STJ por até nove anos. Por esse prognóstico, Lula, de 72 anos, só poderia ser preso aos 81. Fiel da balança do julgamento de quarta-feira, Rosa já manifestou posições divergentes sobre a antecipação da pena. Ao ser sabatinada para o cargo em 2011, mostrou-se simpática à tese: “O cumprimento da pena após o trânsito em julgado da sentença condenatória realmente gera a cada dia na sociedade uma sensação de impunidade do sistema que nós temos de tentar solucionar de alguma forma”. No entanto, no julgamento da questão em 2016, revelou posição oposta: “A mim causa enorme dificuldade ultrapassar barreiras temporais e partir para soluções que envolvam a privação da liberdade sem que pelo menos tenhamos, dentro do que o nosso sistema penal assegura, uma decisão transitada em julgado”. Qual dos dois entendimentos prevalecerá agora? Apesar de derrotada na votação de 2016, Rosa sempre respeitou a decisão do plenário do STF, que validou a prisão antecipada por seis votos a cinco. Até quando se manifestou favoravelmente à concessão de um salvo-conduto a Lula para que ele não fosse preso antes do julgamento do habeas-corpus, a ministra frisou que sempre se guia pelas decisões do colegiado, mesmo discordando pessoalmente delas. Para os defensores da prisão imediata do petista, esse seria um indicio de que Rosa votará contra a concessão do habeas corpus. Na semana passada, em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, o juiz Sergio Moro, que auxiliou Rosa no julgamento do mensalão, fez uma elegante pressão sobre a ministra. Disse Moro: “Eu tenho um apreço especial pela ministra Rosa Weber. Fui convocado, trabalhei com ela, pude observar a seriedade da ministra, a qualidade técnica da ministra. Então, tenho a expectativa de que esse precedente não vai ser alterado”. Gaúcha de Porto Alegre, Rosa Weber foi indicada ao Supremo por Dilma Rousseff, que acolheu uma sugestão apresentada por sua filha, a procuradora do trabalho Paula Araújo, e por seu ex-marido, o advogado trabalhista Carlos Araújo, que faleceu em 2017. A filha e o ex-marido conheciam Rosa de círculos jurídicos do Rio Grande do Sul e, diante da exigência de Dilma de nomear uma mulher para o STF, ofereceram o nome da ministra. Assim que chegou ao tribunal, Rosa dedicou-se a estudar direito penal e recrutou o paranaense Sergio Moro como juiz auxiliar para ajudá-la no julgamento dos réus do escândalo do mensalão, que ocorreria dali a poucos meses. Em seus votos, Rosa absolveu José Dirceu, José Genoino e Marcos Valério do crime de formação de quadrilha, mas condenou os três pelo crime de corrupção. No auge do petrolão, Lula foi flagrado em um grampo afirmando que a ministra deveria ser procurada por petistas. Na época, Rosa era relatora de um pedido para suspender as investigações dos casos do tríplex e do sítio de Atibaia e retirá-los das mãos da Justiça de Curitiba. “Se homem não tem saco, quem sabe uma mulher corajosa possa fazer o que os homens não fizeram”, disse Lula numa conversa telefônica com o então ministro Jaques Wagner. Alvo do desabafo, Rosa mostrou-se de fato corajosa. Apesar da pressão, rejeitou o recurso do ex-presidente, que acabou condenado no caso do triplex e agora está a uma canetada da cadeia. Lula, na época, disse que o Supremo era uma instituição acovardada. COMO ELA VOTA? Rosa Weber costuma se alinhar com os ministros que têm assumido posições mais duras em relação aos réus da Lava-Jato. EDUARDO CUNHA - A ministra votou contra um pedido de libertação do ex-presidente da Câmara. Levou trinta segundos para apresentar sua posição, que teve outros sete votos na mesma direção. “Não houve descumprimento de decisão desta Suprema Corte que autorizasse a procedência da reclamação”, sintetizou. AÉCIO NEVES - O voto de Rosa Weber foi decisivo neste caso: por 3 a 2, a 1ª Turma da Corte decidiu que o senador deveria ser afastado do cargo. Antes, por unanimidade, a turma havia negado o pedido de prisão feito pelo Ministério Público Federal. Na opinião da ministra, o flagrante necessário para a prisão já havia se esvaído, embora o afastamento do cargo ainda fosse necessário. FATIAMENTO DA LAVA-JATO - Rosa votou pelo desmembramento das apurações que envolvessem crimes da Lava-Jato praticados em outros estados. A decisão retirou várias investigações das mãos do juiz Sergio Moro. Outros sete ministros votaram da mesma forma. O ACORDO DA JBS - O STF, com o voto de Rosa, rejeitou tanto a anulação da delação da JBS quanto a remoção do ministro Edson Fachin da relatoria do caso. “Cabe ao relator, sim, em decisão monocrática, a homologação do acordo de delação premiada”, afirmou, referendando a decisão. O placar final foi de 10 a 1. DELAÇÕES DA PF - Neste caso, a ministra tomou o caminho do meio: votou para que a Polícia Federal possa selar delações premiadas, mas somente com o aval do Ministério Público. A votação acabou suspensa, mas já com maioria formada com posição idêntica à da ministra. 3#4 POLÍTICA – TEMPOS OBSCUROS Tiros contra ônibus de Lula e ameaças a Fachin engrossam rol de violência política nunca visto no país desde a redemocratização. ROBERTA VASSALLO DIANTE DA NOTÍCIA de que pelo menos três tiros haviam atingido a lataria de dois ônibus da comitiva do ex-presidente Lula, o governador de São Paulo, o tucano Geraldo Alckmin, afirmou que o petista “colheu o que plantou”. O deputado Jair Bolsonaro, também pré-candidato à Presidência da República, foi na mesma linha. “O Lula quis transformar o Brasil em um galinheiro e agora está colhendo ovos por onde passa”, disse ele, fazendo questão de falar em ovos quando o problema são tiros. Alckmin, logo depois, voltou atrás, no seu tom plácido, mas algo está errado quando duas figuras públicas que pretendem presidir o Brasil reagem com uma quase indiferença a um ataque a bala contra um político. De onde os tiros saíram ainda não se sabe. Os primeiros indícios sugerem que tenham saído de militantes da direita radical, porém essa não é a única hipótese. O incidente ocorreu no Paraná — um dos estados incluídos na rota das viagens-comício que o ex-presidente vem fazendo desde 19 de março. Na terça-feira 27, ocupantes de dois dos três ônibus que compunham a comitiva relataram ter ouvido barulhos semelhantes ao impacto de pedradas na lataria segundos antes de os motoristas, também alertados por alguma anormalidade, estacionarem os veículos. O exame dos carros revelou um pneu furado por um punhado de pregos e buracos, supostamente feitos por tiros, nas laterais da lataria. Lula estava no primeiro ônibus, que não foi atingido. A Policia Civil abriu um inquérito para investigar o episódio, e a Secretaria da Segurança Pública do Paraná anunciou a designação de um “grupo de elite” para a investigação. O que se sabe até agora é pouco e inconclusivo. O grupo Coletivo de Advogados e Advogadas pela Democracia (Caad), por exemplo, entregou ao Ministério Público do Estado do Paraná imagens de conversas de grupos de WhatsApp, críticos ao PT, em que os integrantes sugeriam trocar os “ovos e pedras” por “munição letal”. Em grupos intitulados “Caravana contra Lula 26/03” e “Foz contra Lula 26/03”, um integrante propôs “ir ao Paraguai comprar um fuzil”, enquanto outro indicou que comprasse “um puma 38 ou 44”, em referência a uma carabina da marca Taurus. Outro integrante disse, horas depois: “Tem que meter bala, aproveita que tá de noite (sic), mirar nos pneus, motor e bala (sic)”. O procurador do Paraná Olympio Sotto Maior Neto afirmou que as conversas configuram “apologia e incitação à prática de crimes” e que serão investigadas. Ele afirmou ainda que a denúncia será encaminhada à Procuradoria-Geral da República (PGR). Lula apressou-se em nomear culpados pelo desfecho conturbado de sua caravana, que terminou na quarta-feira, em Curitiba, um dia após os ataques. “Eu só queria dizer que isso (referia-se ao ódio) tem responsabilidade. Eu queria dizer que a imprensa foi conivente com isso o tempo inteiro. A imprensa. O culpado desse ódio no Brasil chama-se Rede Globo de Televisão.” A emissora não comentou a declaração de Lula. O ex-presidente também desferiu críticas ao governo paranaense, que não lhe teria proporcionado a devida escolta durante o trajeto no estado. A Secretaria da Segurança Pública rebateu a acusação e disse que o PT não fez “pedido formal” de acompanhamento policial. Do outro lado do muro ideológico, a precipitação não foi menor. Em sites e grupos de WhatsApp viralizou a “notícia” de que as marcas dos tiros nas latarias dos ônibus eram um sinal inquestionável de que se tratava de um ataque forjado para reforçar a vitimização de Lula, cuja prisão pode estar na iminência de acontecer. Segundo a explicação dos autores anônimos, tiros disparados contra objetos em movimento não deixariam marcas perfeitamente redondas, como no caso dos veículos da caravana — e sim “rasgada”. É uma tese que o presidente da Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais, Marcos Camargo, rebate: “Nada impede que um tiro de curta distância deixe uma marca mais rasgada, e que um de longa distância resulte em uma mais circular. As variáveis que determinam isso são muitas”. No mesmo dia do ataque à comitiva de Lula, a GloboNews levou ao ar uma entrevista do ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Edson Fachin. Nela, o relator da Lava-Jato afirmou ao jornalista Roberto D’Avila que sua família tem sofrido ameaças. O magistrado não deu detalhes da intimidação, mas revelou ter pedido reforço de segurança à polícia. O ministro disse que não viu necessidade de pedir abertura de inquérito policial. Considerou que tornar pública a ameaça intimidaria o agressor. Fachin é relator de cinco ações penais e 67 inquéritos da Lava-Jato no STF. Os dois episódios, acrescidos do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ), em 14 de março, compõem um rol de violência no ambiente político inédito na história recente do Brasil. Nenhum dos três casos ainda foi esclarecido, mas, pela aparência, são todos exemplos de violência política que caracterizam agressões à democracia. Quanto a eventuais ganhos individuais que o episódio do ataque à comitiva petista possa render, há apenas o que lamentar. Se os tiros tiverem partido mesmo de grupos de extrema direita, terão saído pela culatra, dado que o episódio é tudo o que o PT poderia desejar para legitimar seu discurso vitimista. Se, pelo contrário, tiver ocorrido o que, na quarta-feira, Bolsonaro, sem apresentar nenhuma prova, sugeriu (que as balas partiram de petistas interessados em faturar com a imagem de perseguição), a desmoralização do PT será completa. Não há o que comemorar, nem quem possa fazê-lo. Os acontecimentos mostram apenas que, lamentavelmente, o Brasil está rumando para tempos obscuros — se nada for feito para deter essa marcha de insanidade. 3#5 DORA KRAMER – A QUEM INTERESSA Nunca o pior foi tão melhor para compor o quadro ideal para o PT. VINHA MORNA a trajetória da caravana de Luiz Inácio da Silva Brasil afora, até que no Sul a sorte lhe cruzou o caminho na forma do repúdio violento de oponentes, com atos organizados para configurar confronto. Das ofensas verbais, degeneraram para agressões físicas, ataques a veículos do comboio, uma pedrada na orelha de um viajante, tiros a esmo; cenário propício ao ensaio de uma tragédia anunciada. Nunca o pior foi tão melhor para o PT na composição do quadro de rebuliço, perseguição e vitimização que interessa ao partido, nesta altura desprovido de cabedal legal, político e moral para ocupar um espaço que já não consegue disputar em condições normais de temperatura. Quanto mais quente a fogueira, maior a chance de o incêndio alastrar-se ao molde de terra arrasada. Os radicais do Sul prestaram, assim, um belo serviço aos petistas, que tão necessitados andavam de um bom embate. Tão ávidos que resolveram abrir guerra contra a Netflix por causa da série O Mecanismo. Boicote a uma plataforma de cultura e entretenimento porque não gostaram de uma única produção. Isso seria só uma tolice, não fosse uma afronta direta à criação e ao conhecimento, além de um elogio ao sectarismo mais tacanho. Nisso esse pessoal não difere da turma de Jair Bolsonaro e seus anseios de hábitos, costumes e pensamentos mediante a aniquilação dos contrários tidos como infiéis. Seita é seita, à esquerda ou à direita. Traço comum dos fanáticos é a ausência de discernimento acompanhada de absoluta ignorância em relação a tudo o que escapa à estreiteza da percepção dessa gente. Tão curtos de visão são os patrocinadores das barricadas estridentes contra Lula que não atinaram para o valor da mercadoria que lhe entregaram de graça. Deram margem a manifestações de condenação à violência (óbvio) e proporcionaram ao PT a chance de ir ao ministro da Segurança anunciar que a integridade física de Lula é de responsabilidade do governo federal. Responsabilidade essa para com os patrimônios (públicos e privados) e vidas que o PT não teve diante de depredações e invasões do MST e companhia quando estava no comando da nação. Comedimento que o partido cobra do alheio, mas não exerce em casa. Seja quando Lula incita a Polícia Militar a invadir a casa de manifestantes para aplicar-lhes “um corretivo”, seja quando dirigentes petistas semeiam a suposição do pânico ao difundir versões (falsas) de que o Brasil entraria em estado de combustão no caso da prisão de Lula. Com o semblante mais inocente do mundo, coisa típica dos sonsos, o PT clama por tolerância, denuncia-se vítima de intolerância, depois de uma vida dedicada a ser intolerante. Nenhum partido fez carreira com base na intransigência com tanta ênfase como o PT. Na oposição, essa peculiaridade aparecia no discurso da austeridade moral e ética na política. No governo, o rigor aplicou-se à condenação dos adversários e à defesa das ilicitudes de companheiros e aliados. Toda forma de violência é condenável. Lamentável, portanto, que o PT agora seja vítima da consequência do “bateu” e, por isso, “levou”. 3#6 CRIME – TRAGÉDIA PELO WHATSAPP A polícia suspeita que criadores de grupos no Facebook e no WhatsApp estejam por trás da onda de suicídios de adolescentes em Goiás. ULLISSES CAMPBELL, de Goiânia A POLÍCIA de Goiás já investigava a morte de três adolescentes que tinham cometido suicídio no estado quando, no dia 15 de março, Mikaio Alves Jorge, de 18 anos, decidiu procurar a delegada Sabrina Lelis para dar um depoimento aterrador. Vinte dias antes, ele havia ido ao enterro de Higor Pires Moreira, que se matara aos 15 anos de idade. À polícia, Mikaio contou que, como ele, Higor participava de um grupo virtual batizado de The H4ters (Os Odi4dores). Sua finalidade: estimular e desafiar seus integrantes a tirar a própria vida. Estudioso e descrito como um jovem carinhoso com os pais e a namorada, Higor, afirma a família, mudou de comportamento após entrar para o The H4ters. “Ficava o dia inteiro no computador e não queria mais sair com os amigos”, conta o pai, Onilton Pires Moreira. Na tarde de 21 de fevereiro, o jovem pediu à mãe para faltar à aula de inglês. Ela assentiu, mas logo depois notou que o filho estava cambaleante. Em seu quarto, encontrou seis cartelas vazias de remédios para pressão alta. Higor negou ter tomado as pílulas. Enquanto a mãe, apavorada, telefonava para o marido para pedir ajuda, Higor saiu de casa. Os pais tentaram, em vão, encontrá-lo nas redondezas ou na casa de amigos. Vinte e quatro horas depois, o menino foi achado enforcado na despensa da casa vizinha, que estava desocupada. “Estamos sem chão. A minha vida também acabou. Busco respostas e não as encontro”, diz o pai. Em depoimento prestado à polícia, Ana Julia, ex-namorada de Higor, afirmou que ele se cortava com frequência e vinha falando em se matar. Antes de sair de casa, deletou todos os arquivos de seu computador, orientação comum dos grupos de estímulo ao suicídio, segundo a polícia. A primeira suspeita de que ele poderia ser alvo do The H4ters surgiu quando, em seu velório, os pais perceberam a presença de diversos adolescentes desconhecidos. Vestidos de preto, faziam selfies ao lado do caixão e tiravam fotos da sepultura. Entre os jovens estava Mikaio. “Éramos incentivados a ir aos velórios. Íamos olhar porque também pensávamos em morrer. Depois, mandávamos fotos do enterro ao grupo para provar a missão cumprida”, disse o adolescente. No mesmo dia em que Higor se matou, Gabriel Câmara, de 13 anos, também de Goiânia, jogou-se do 26º andar de um edifício de classe média alta da cidade, onde mora a avó. Ele havia sido repreendido pelos pais por ter voltado sozinho da escola. Deixou um bilhete: “Agora vou fazer a coisa certa. Tchau, gente”. A polícia ainda investiga se o menino teve contato com membros do The H4ters. Os quatro fundadores do grupo são conhecidos pelos apelidos que usam no Facebook: Igor Akbar, Emerson Akbar, Gabriela Akbar e Saymon Akbar. Na descrição do grupo na internet, eles se dizem uma “família”. Mikaio relatou à polícia o papel de cada um: Igor é o cabeça do grupo; Emerson, o administrador; Gabriela, especialista em invadir computadores, outra atividade praticada pelo The H4ters; e Saymon, o responsável por arregimentar jovens deprimidos nas redes sociais. A delegada Sabrina, da Delegacia Estadual de Repressão a Crimes Cibernéticos de Goiás, afirmou que pedirá a apreensão dos quatro chefes do The H4ters, todos menores de idade: Igor vive em São Paulo; Gabriela, em Rondônia; Emerson, em Mato Grosso; e Saymon, no Amazonas. Seus nomes verdadeiros são mantidos em sigilo e foram obtidos mediante uma ordem judicial que obrigou o Facebook a revelar os números de celular associados às suas contas. Incentivar o suicídio é crime passível de punição, que vai de dois a seis anos de detenção. Para a polícia de Goiás, o The H4ters também está por trás do suicídio de Karoline Tuzzin, de 14 anos. Ela se jogou do 5º andar do prédio da escola onde estudava, em Rio Verde, no interior de Goiás, em 7 de março. Em depoimento, colegas da jovem disseram que ela havia entrado para o The H4ters e frequentava seus grupos de WhatsApp. Em mensagens no celular da adolescente, a polícia achou frases de membros do grupo: “Quem quer uma corda para se suicidar?” e “Hoje é dia de suicídio. Quem começa?”. Mikaio informou à polícia que por três vezes membros do The H4ters sugeriram que ele se matasse, aconselhando-o a tomar comprimidos e cortar os pulsos. Ele conta 87 cicatrizes nos braços. “Por maior que fosse a minha vontade de morrer, não tive coragem de me matar”, disse a VEJA. Assim como no jogo Baleia Azul, criado na Europa, e que induziu jovens brasileiros ao suicídio em 2017, os participantes do The H4ters recebem “tarefas” dos fundadores. Segundo Mikaio, Igor Akbar determina que eles invadam computadores alheios, “derrubem” o Facebook de certas pessoas e desmoralizem inimigos da organização. Se obtêm sucesso nas missões, são “promovidos” no organograma do grupo — o The H4ters tem hierarquia estrita. O posto mais alto é o de “curador”, que cabe a Igor. O mais baixo, que Mikaio ocupava, é o de “cooptador”, que se encarrega de buscar novos membros. Na sexta-feira 23, ocorreu outra tragédia: uma quarta adolescente se matou em Goiás, também na cidade de Rio Verde. Kariny Martins, de 13 anos, via televisão em casa com a irmã mais velha quando saiu da sala rumo à cozinha. Como demorou a voltar, a irmã foi procurá-la e deparou com seu corpo pendurado a uma corda no quintal. A polícia apreendeu o computador e o celular da menina. Nas mensagens encontradas, já identificou um nome familiar: Igor Akbar. OS SINAIS DE PERIGO Especialista em prevenção de suicídio, a psicoterapeuta Karina Okajima Fukumitsu diz que o isolamento dos jovens os deixa vulneráveis ao ataque de grupos mal-intencionados e que os jogos virtuais podem alterar a compreensão de que a morte é algo ruim e definitivo. Por que o suicídio entre jovens pode ser estimulado pela internet? As redes sociais podem acelerar o isolamento dos jovens do mundo real, o que os deixa mais vulneráveis à influência das pessoas com quem interagem apenas virtualmente. Se uma dessas pessoas for mal-intencionada, ela terá campo livre para estimular ideias negativas e agir sem ser incomodada. A má influência também ocorre no ambiente real. Mas a escala do virtual é muito maior e o contato, mais fácil. Ha algum sinal irrefutável emitido pelos jovens que pode ser encarado como um grito de socorro? Um dos mais evidentes é a automutilação. Os jovens se cortam nos braços e nas partes do corpo que podem ser cobertas com roupas. Há também a irritabilidade excessiva e a agressividade verbal. Alguns, antes indiferentes a esportes, passam a se informar sobre atividades radicais que envolvem a possibilidade de morte. Começam também a falar com mais interesse sobre o suicídio de terceiros. Eu chamo essa fase de “morrência”, em que o jovem definha e se esvazia existencialmente. O ápice desse processo é o suicídio. Por que jovens obedeceriam a tarefas suicidas ditadas por desconhecidos? O adolescente busca identidade e pertencimento. O discurso desses grupos faz parecer que o suicídio é uma vitória e prova de coragem como num jogo. A partir de 12 anos, o jovem tem consciência da morte. Mas vivemos na era dos jogos virtuais, em que a morte, mesmo violenta, pode resultar na volta do jogador, às vezes ainda mais forte. Isso compromete a compreensão desses jovens a respeito do fenômeno. Não é algo comum, mas acontece. ______________________________________________ 4# INTERNACIONAL 2018.04.04 4#1 ESTADOS UNIDOS – POLÍTICA PORNOGRÁFICA 4#2 COREIA DO NORTE – KIM SAI DA TOCA 4#3 RÚSSIA – O QUE MEXE COM PUTIN 4#1 ESTADOS UNIDOS – POLÍTICA PORNOGRÁFICA As mulheres contam suas aventuras sexuais com Trump — e ele, um parlapatão no Twitter, faz silêncio. Não há crise política alguma, apenas um presidente exposto a um ridículo constrangedor. DUDA TEIXEIRA E THAIS NAVARRO Antes de se tornar presidente, Donald Trump se vangloriava de conseguir a mulher que bem entendesse. Em um vídeo gravado em 2005 e vazado durante a campanha de 2016, ele contava que seduzia casadas e celebridades. “Eu nem espero. Quando você é uma estrela, elas deixam você fazer isso. Você pode fazer qualquer coisa.” Nas últimas semanas, duas mulheres que tiveram relações sexuais com Trump em 2006 trocaram de posição e agora querem fazer o que bem entendem com ele. Orientadas por bons advogados, elas buscam na Justiça o direito de divulgar suas histórias e ganhar muito dinheiro. “Eu ainda não recebi 1 milhão de dólares”, disse a atriz pornô Stephanie Clifford, cujo nome artístico é Stormy Daniels (stormy significa “tempestuosa”, em inglês). Ela está em uma turnê de strip-tease chamada “Vamos devolver o tesão para a América”, uma brincadeira com o slogan de campanha “Vamos devolver a grandeza da América”. Já Karen McDougal, ex-modelo da Playboy, vendeu sua história como amante de Trump ao polêmico jornal National Enquirer, em 2016, mas o dono era amigo do candidato e nada publicou. No caso de Stormy, o escândalo pode ter implicações legais concretas para o presidente. Em entrevista ao canal CBS, a estrela pornô afirmou que, em 2011, depois de vender por 15.000 dólares a história de sua relação com Trump à revista In Touch, um homem desconhecido aproximou-se dela e da filha em um estacionamento em Las Vegas com uma ameaça. “O sujeito disse: ‘Deixe Trump em paz. Esqueça a história’”, contou Stormy. Dirigindo-se à filha, o homem teria dito; “Ela é uma menina bonita. Seria uma pena se acontecesse algo à sua mãe”. Stormy declarou que se sentiu intimidada e desistiu de revelar o caso à imprensa. Em 2016, onze dias antes da eleição para presidente, Michael Cohen, advogado de Trump, conseguiu que ela assinasse um acordo para novamente esconder o affair, em troca de 130.000 dólares. Stormy disse que só aceitou a oferta porque estava sob pressão e que o contrato não vale porque Trump não chegou a firmá-lo. Se Cohen deu o dinheiro do próprio bolso com o objetivo de ajudar na campanha, como afirma, ele ultrapassou o limite legal para as doações eleitorais. Se o fez como membro da campanha ou se foi reembolsado pelo candidato, ele falhou em não declarar o montante. Nos dois casos, Cohen ou Trump podem ser punidos com multa. Não mais do que isso. O caso, portanto, não chega a constituir uma crise política, como tentam fazer parecer seus adversários, mas empurra o presidente para o picadeiro de um circo ridículo — além de deixar em posição constrangedora sua mulher, Melania, mãe de seu filho caçula, de 12 anos. As narrativas de Stormy Daniels e Karen McDougal têm pontos em comum. Elas eram republicanas e conheceram Trump no mesmo torneio de golfe em Lago Tahoe, na Califórnia, em 2006. Trump disse a ambas, separadamente, que elas lembravam sua filha, Ivanka. As duas ainda ouviram dele que o relacionamento com Melania, que havia dado à luz seu filho Barron poucos meses antes, não ia bem. Ambas afirmam, também, que Trump não usou camisinha com elas. Mas, enquanto Karen garante que rolou sentimento mútuo e que eles se viam cinco vezes por mês, Stormy disse que o encontrou apenas duas vezes. Na primeira, Trump começou falando de si mesmo e mostrando sua foto na capa da revista Forbes. Entediada, a atriz pornô disse-lhe que alguém deveria bater nele com a revista e pediu que se virasse e abaixasse as calças. Segundo ela, o bilionário aceitou a brincadeira. Stormy enrolou a revista e deu alguns golpes no traseiro do futuro presidente. Depois, fizeram sexo. Impressionado, Trump disse que Stormy merecia atuar em seu programa O Aprendiz. O assunto ficou para ser tratado em um segundo encontro, um ano depois. A atriz afirma ter recusado sexo nessa ocasião. Ele a fez assistir a um documentário sobre ataques de tubarões. Ao final, Stormy insistiu sobre a promessa de aparecer na TV. Ele pediu mais uma semana; ela foi embora. Especula-se que as revelações podem abalar a base eleitoral de Trump e, por tabela, os votos em republicanos nas eleições legislativas deste ano. Nada, porém, do que veio à tona traz algo novo sobre o perfil do presidente. Por isso mesmo, não parece razoável que seu eleitorado fique chocado ou espantado a ponto de lhe retirar o voto. “Soa improvável que o caso mude a opinião dos republicanos. Todos já estavam bem cientes de que Trump é mulherengo, tem um comportamento inadequado e faz comentários problemáticos”, diz o cientista político Geoffrey Skelley, da Universidade da Virgínia. O presidente poderia estar encrencado se tivesse mentido publicamente sobre sua relação com essas mulheres, como fez Bill Clinton no escândalo com a estagiária Monica Lewinsky, em 1998, que quase lhe custou o cargo — um episódio durante o qual os republicanos mostraram um nível de moralismo e assepsia sexual que agora desapareceu de suas fileiras. Trump, porém, sempre tão boquirroto no Twitter, calou-se sobre as declarações das ex-amantes. Diz Michael Gerhardt, professor de direito constitucional na Universidade da Carolina do Norte: “Ainda não há nada sério contra ele”. 4#2 COREIA DO NORTE – KIM SAI DA TOCA Pela primeira vez, o norte-coreano vai ao exterior. Escolheu a China, para mostrar aos EUA que tem aliado de peso. DUDA TEIXEIRA DEPOIS DE TESTAR uma bomba de hidrogênio e mísseis balísticos que podem atravessar metade do planeta, o ditador da Coreia do Norte, Kim Jong-un, sentiu-se à vontade para sair do isolamento. Na semana passada, Kim chegou de surpresa a Pequim em um trem blindado de 21 vagões e janelas foscas. Ele ficou dois dias na China. Durante esse período, Kim e Xi Jinping fizeram reuniões, posaram para fotos e jantaram na companhia das respectivas mulheres. A visita internacional, a primeira desde que ele assumiu o poder, em 2011, só foi confirmada depois que ele já havia retornado ao seu país. Ao visitar Xi Jinping, o norte-coreano tenta um alívio nas sanções econômicas. As exportações de derivados de petróleo da China caíram para quase zero em outubro de 2017, e a Coreia do Norte corre o risco de ficar sem reservas em moeda estrangeira no fim do ano. Além disso, Kim quis mostrar ao presidente Donald Trump, com quem deve se encontrar em breve para discutir seu arsenal nuclear, que conta com o endosso chinês. Kim pleiteia a retirada dos soldados americanos da Península Coreana e o fim dos exercícios militares conjuntos dos Estados Unidos com a Coreia do Sul em troca do fim de seu programa nuclear. “O problema é que, no improviso, os dois correm o risco de combinar alguma coisa que não seria aplicável em seguida”, diz Christopher Hill, ex-embaixador americano na Coreia do Sul que participou de negociações com a Coreia do Norte no governo de George W. Bush. E Trump é o rei do improviso. A visita de Kim à China “foi muito bem”, comentou ele — no Twitter. 4#3 RÚSSIA – O QUE MEXE COM PUTIN Incêndio em shopping ofusca a crise diplomática. NA SEGUNDA-FEIRA 26, o governo americano anunciou a expulsão de sessenta diplomatas russos. A medida, que também foi adotada por outros 25 países ocidentais e pela Organização do Tratado Atlântico Norte (Otan), foi uma represália ao envenenamento do ex-espião russo Sergei Skripal e de sua filha, na Inglaterra. Segundo o governo inglês, a ordem partiu de Moscou. A expulsão de diplomatas é uma maneira de mostrar que o Ocidente está unido contra as tentativas do governo russo de causar o caos em suas democracias, mas não é o bastante para conter o presidente Vladimir Putin. “Simbolicamente, isso pode atingi-lo, mas as medidas não terão muito efeito se não forem acompanhadas por mais sanções econômicas”, diz o historiador inglês Steve Hewitt, da Universidade de Birmingham. O que realmente pode preocupar Putin é o descontentamento interno. Ele foi reeleito com folga no último dia 18, mas a população está mais consciente dos próprios direitos e, assim como vê o presidente como responsável por seus ganhos, também atribui a ele os problemas que enfrenta. A reação ao incêndio em um shopping center na Sibéria que matou 64 pessoas, entre elas 41 crianças, no dia 25, mostra o risco que todo governo personalista e centralizador corre. Os familiares relacionam as falhas nos dispositivos anti-incêndio à corrupção das autoridades. Em meio ao luto, houve protestos aos gritos de “Renuncie, Putin”. D.T. __________________________________________ 5# ECONOMIA 2018.04.04 5#1 CONJUNTURA – O ALÍVIO NÃO CHEGOU 5#2 MAÍLSON DA NÓBREGA – AS BATALHAS DA PREVIDÊNCIA 5#3 FINANÇAS – A CIRANDA DO “SISTEMA U” 5#1 CONJUNTURA – O ALÍVIO NÃO CHEGOU Na contramão do que era de esperar, os juros dos financiamentos permanecem em alta. Foi a maneira que os bancos encontraram para se proteger da inadimplência e continuar lucrando. BIANCA ALVARENGA O Brasil, finalmente, vai deixando de ser o país com os maiores juros do mundo. O Banco Central fez doze cortes na Selic, a taxa básica brasileira, que foi reduzida para 6,5% ao ano — o menor valor registrado na história. Nova redução deve ocorrer em maio. Descontando-se a inflação, o chamado juro real caiu abaixo de 3%, inferior ao da Argentina, da Turquia e da Rússia. O alívio só foi possível graças à queda da inflação, que saiu do patamar de dois dígitos em 2015 para menos de 3% em 2017. Os juros mais camaradas deverão ajudar na retomada da economia. Os benefícios, entretanto, não serão sentidos amplamente pelos consumidores e pelas empresas. Isso porque as taxas comerciais, aquelas cobradas pelos bancos em financiamentos e no crediário, não caíram, até o momento, na mesma proporção da queda na Selic. Na verdade, permanecem nas alturas. Segundo dados do Banco Central, os juros dos financiamentos determinados livremente pelas instituições financeiras estão em alta nos últimos três meses, na contramão do que ocorre com a Selic. A taxa média paga pelas pessoas físicas está em 57% ao ano, bem acima do juro médio de 40% cobrado há cinco anos, quando a Selic era bem mais elevada. Por que tamanho descompasso? Durante a crise econômica, os bancos foram elevando as suas margens, com o propósito de se proteger de perdas com os inadimplentes e assim manter a rentabilidade. Para eles, a estratégia deu mais do que certo. No ano passado, o lucro somado de Itaú Unibanco, Bradesco, Santander, Caixa e Banco do Brasil chegou a 70 bilhões de reais, alta de 22% em relação ao ano anterior. As instituições financeiras souberam ganhar mais emprestando menos. Agora, com a retomada da economia, começa a ocorrer um aumento na demanda por crédito — como para a troca do carro, a compra de um apartamento ou a aquisição de eletrodomésticos. Com o tempo, portanto, a disputa por clientes deverá levar a uma redução dos juros na ponta final. “Existe uma melhora perceptível de alguns indicadores que compõem o custo do dinheiro”, afirma Miguel José de Oliveira, da Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade (Anefac). O número de pessoas com nome sujo permanece elevado, mas há tendência de retração. Enquanto isso, o Banco Central vem pondo em prática medidas regulatórias para reduzir o custo dos financiamentos. Na semana passada, liberou parte dos depósitos compulsórios, volume de recursos que ficam represados nos bancos para conter o fluxo de dinheiro na economia. A decisão permite que os bancos coloquem 25 bilhões de reais em circulação. Além disso, o BC está atacando as modalidades mais caras de financiamento. Em 2017, alterou as regras do cartão de crédito rotativo. O cliente pode ficar nessa alternativa por apenas um mês — depois deverá migrar para um financiamento com juros mais baixos. Os bancos também foram pressionados a repensar o funcionamento do cheque especial, opção que, a pretexto de comodidade, castiga os correntistas com juros acima de 10% ao mês e mais de 300% ao ano. Um novo sistema deverá ser apresentado em abril. Seria de grande ajuda se houvesse mais concorrência no setor bancário. Depois das fusões e aquisições dos últimos anos, os cinco maiores bancos controlam 80% dos ativos totais. Trata-se de um dos sistemas mais concentrados do mundo. A falta de competição é um incentivo à menor eficiência. Os custos administrativos representam até o dobro dos registrados nos Estados Unidos ou na Europa. “Os bancos vão ter de se adaptar. As fintechs (empresas tecnológicas de finanças) e as cooperativas de crédito estão mostrando que é possível diminuir as taxas, embora não consigam ainda gerar pressão competitiva sobre as grandes instituições”, diz António Bernardo, presidente da consultoria Roland Berger. Como em qualquer outro mercado, o consumidor só será beneficiado se houver mais opções disponíveis. CRÉDITO AINDA CARO A taxa básica de juros, a Selic, nunca esteve tão baixa, mas o custo dos empréstimos para as pessoas e as empresas permanece nas alturas (juros ao ano) Taxa Selic 6,5% Cheque especial 324% Crédito pessoal (exceto consignado) 125% Conta garantida 41% Crédito consignado 27% Compra de carro 22% Capital de giro 18% Forte: Banco Central O DRAMA DOS VICIADOS EM DÍVIDAS Apesar dos sinais de recuperação da economia, o número de brasileiros endividados chegou a 61,7 milhões em fevereiro passado — o equivalente a 40% da população adulta. O número é alto porque o hábito de manter as contas em dia não é apenas uma questão financeira decorrente do estado geral da economia — pode ser uma questão comportamental. Por isso, há grupos especializados que promovem reuniões semanais com devedores com a finalidade de trocar experiências sobre consumo impulsivo e propensão a viver no vermelho. Uma dessas organizações é o Devedores Anônimos (DA), que funciona nos mesmos moldes do Alcoólicos Anônimos(AA). “Não tenho rendimento fixo. De pouco adianta ter diversos diplomas e não ganhar o suficiente. Quando consigo renda por algum trabalho, gasto tudo rapidamente”, diz Rosana (nome fictício), ex-atriz e ex-publicitária que, com a ajuda do DA, conseguiu quitar seus débitos. Às vezes, a compulsão financeira vem acompanhada de outros vícios. O paulistano Cleber, por exemplo, só procurou o DA depois de começar a frequentar o AA. Ao notar sua compulsão para o álcool, ele entendeu que tinha outra: a para o gasto descontrolado. “Tinha perdido minha empresa, estava com dívidas impagáveis”, conta ele. Pertencer a uma classe social mais alta não livra ninguém do problema. As pessoas de maior renda são justamente as que têm maior resistência em admitir a compulsão. Pior. É comum que, diante dos apuros, como a perda do emprego, algumas tentem manter o mesmo padrão de vida em vez de cortar gastos para se encaixar à nova realidade. Pedir um empréstimo para quitar outra dívida é um comportamento recorrente entre os endividados. A tendência é recorrer, num primeiro momento, a modalidades como cheque especial e cartão de crédito - de longe as mais caras. Para sair do vermelho, aceitar o vício é o primeiro passo. Uma vez que o devedor reconhece o problema, a próxima etapa é se planejar. Foi o que conseguiu fazer o operador de cobrança Giovanni Cardoso dos Santos, de 24 anos. Como ele não pagava a fatura toda do cartão e continuava a consumir acima do seu padrão, o débito se multiplicou e atingiu 2100 reais. “Foi um descontrole. Tinha quatro cartões.” No último Feirão Limpa Nome da Serasa, ele renegociou a dívida, que caiu para 597 reais. Recém-saído da lista de devedores, Santos diz que não pretende voltar a usar o cartão de crédito tão cedo. “Quero manter o meu nome limpo.” Felipe Machado e Tatiana Babadobulos 5#2 MAÍLSON DA NÓBREGA – AS BATALHAS DA PREVIDÊNCIA O governo perdeu uma delas, a da opinião pública. O FRACASSO da reforma da Previdência mostrou que sindicatos, corporações do setor público, o PT e a velha esquerda ganharam a batalha da opinião pública. “Povo na rua, governo recua”, comemorou a CUT nas redes sociais. A ideia da proposta era salvar do desastre os regimes previdenciários, tornados insustentáveis pelas inconsequências da Constituição e pelo envelhecimento da população. Sem a reforma, assistiremos ao colapso fiscal, à falência de programas essenciais de saúde, educação, pesquisa científica e segurança pública, e à alta da inflação. A maioria não se convenceu, todavia, dessa ruína. Verdades gritantes foram rejeitadas. Guardadas as devidas proporções, a sandice chegou a lembrar o que aconteceu quando o pioneiro da revolução científica, Galileu Galilei, fracassou em convencer a Igreja Católica da procedência da teoria heliocêntrica de Nicolau Copérnico, segundo a qual a Terra girava em torno do Sol. Na época, buscava-se a verdade na Bíblia, e não na ciência. Como a Igreja dizia que o Sol girava em torno da Terra, a Inquisição considerou herética a teoria de Copérnico. Seu livro e semelhantes foram proibidos. Galileu negou sua descoberta para escapar da fogueira. Mais tarde, a teoria triunfou. Aqui, sob a influência de mentes tão obtusas como a dos cardeais de Roma do século XVII, foram aceitas barbaridades sobre a reforma da Previdência. Políticos e sindicalistas da Receita Federal emitiram documentos negando o déficit. O rombo de 269 bilhões de reais, quase seis vezes o investimento público federal em infraestrutura, foi visto como manipulação. Mostrou-se o absurdo dos privilégios das aposentadorias de servidores federais, a maior transferência de renda de pobres para ricos em todo o mundo. Nos últimos vinte anos, o déficit desse regime superou em 50% os gastos em educação. Falou-se, ao contrário, que a reforma era contra os pobres. O Brasil é um dos raros países sem idade mínima de aposentadoria, mas a proposta de fixá-la em 65 anos para homens e 62 para mulheres foi comparada com a expectativa de vida ao nascer. Isso era falso, mas muitos acreditaram que os brasileiros morreriam antes de aposentar-se. Na verdade, vale a sobrevida pós-aposentadoria, que é superior a vinte anos, semelhante à de países desenvolvidos. Não difere muito entre regiões do país. Foi fácil, como se viu, amedrontar a população. Por isso, será preciso, na renovação da proposta, vencer a batalha da opinião pública antes de enfrentar a do Congresso. O governo conseguiu persuadir parte da opinião pública de que a proposta atinge uma casta de privilegiados do setor público, mas é preciso desmoralizar as barbaridades ditas sobre a reforma. Há muitas formas de fazer isso. Por exemplo, desenvolver uma estratégia de comunicação que envolva os próprios autores das mentiras. Frente a frente, questionar suas teses e evidenciar a improcedência das afirmações que propagam, por ignorância ou má-fé. 5#3 FINANÇAS – A CIRANDA DO “SISTEMA U” AGU, CGU e TCU criam tantas dificuldades aos acordos de leniência que já se desconfia que, por trás dos obstáculos, haja interesse em “estancar a sangria” da Lava-Jato. MARCELO SAKATE “O QUE OS SENHORES preferem: um fim horroroso ou um horror sem fim?” Essas foram as opções apresentadas por um respeitado advogado à diretoria de uma das maiores empreiteiras do país, em 2015, depois dos avanços das investigações da Operação Lava-Jato. Com a prisão de altos executivos envolvidos nas transações ilícitas, ficava evidente que havia se rompido o mecanismo de proteção que blindava as ações subterrâneas de corruptos e corruptores. As alternativas, como tentava explicar o advogado, eram duas: confessar os crimes, delatar envolvidos e colaborar com a Justiça para encerrar o martírio o mais rápido possível (o “fim horroroso”); ou, então, contestar as acusações e brigar indefinidamente na Justiça até as últimas instâncias (o “horror sem fim”). Alguns resistiram por mais tempo, caso de Marcelo Odebrecht, o então presidente da construtora fundada por seu avô Norberto. Mas, no fim, todas as grandes empreiteiras se renderam e buscaram fechar acordos de leniência, o equivalente, para as empresas, a uma delação premiada. O que as companhias não anteciparam é que os obstáculos impostos pelas autoridades federais para homologar esses acordos seriam quase intransponíveis — e, quando os acordos são por fim fechados com um órgão federal, outra repartição pública invariavelmente contesta os termos da negociação. Parece um sistema concebido para evitar a leniência. O tormento dessas empresas hoje responde pelo apelido de “sistema U”. Trata-se da Controladoria-Geral da União (CGU), da Advocacia-Geral da União (AGU) e do Tribunal de Contas da União (TCU). Pela Lei Anticorrupção, que entrou em vigor em 2013, os acordos de leniência devem ser encaminhados pela CGU, o atual Ministério da Transparência. A companhia que adere a eles tem de identificar os demais envolvidos em infrações, entregar provas e adotar políticas de negócios que sejam transparentes e fechem as brechas para atos ilícitos; em troca, obtém redução de multas e pode participar de licitações públicas ou contratar empréstimos com bancos públicos. Ou seja: evita ser classificada como “inidônea”, o que significa ser proibida de prestar serviços ao governo. A Odebrecht, por exemplo, fechou um acordo em dezembro de 2016 como Ministério Público Federal em Curitiba. Em paralelo, 77 executivos assinaram acordos de delação premiada. A empresa comprometeu-se a pagar multas e reparações de 8,5 bilhões de reais, incluindo os acordos selados nos Estados Unidos e na Suíça. Mas a leniência foi questionada porque não teve a anuência da CGU. Agora, depois de um ano de novas negociações, a empreiteira está prestes a assinar outro acordo, desta vez com a CGU e a AGU. Fim da disputa? Talvez, se não houver contestações do TCU. O tribunal tem questionado diversos acordos, especialmente no que diz respeito aos valores ressarcidos aos cofres públicos. Tome-se o caso da construção da usina nuclear Angra 3, cujas obras estão paralisadas desde 2015. Uma análise do TCU apontou uma fraude na licitação, com prejuízo de 400 milhões de reais em valores da época. Quatro construtoras foram declaradas inidôneas pelo tribunal, incluindo a UTC. Posteriormente, a empresa assinou um acordo de leniência com a CGU em que se comprometeu a pagar quase 600 milhões de reais, incluindo reparações por Angra 3. Um caso que, para a empreiteira, já deveria ter sido superado segue insepulto — com todo tipo de consequência negativa para sua atividade comercial. Outras três empresas que assinaram acordos com o Ministério Público — a Odebrecht, a Camargo Corrêa e a Andrade Gutierrez — podem ser obrigadas a desembolsar valores adicionais. Segundo Benjamin Zymler, ministro do TCU, o órgão não se submete nem subscreve, do ponto de vista formal, os termos do acordo de leniência e por isso pode buscar a reparação dos valores. Ao agir assim, contudo, inviabiliza a concretização, na prática, da leniência. Isso só ocorrerá quando uma empresa alcançar a proeza de celebrar acordo com os diversos órgãos públicos — um pesadelo burocrático e legal impensável nos Estados Unidos, por exemplo, onde a leniência vem sendo usada, há um bom tempo, como instrumento de combate aos crimes de colarinho-branco. As empresas americanas fazem acordo de leniência no Departamento de Justiça. E isso basta. Advogados de empresas investigadas criticam os efeitos negativos decorrentes dessa falta de unidade, em especial a insegurança jurídica. “O governo precisa vir a público afirmar e demonstrar de forma efetiva que acordos de leniência são políticas de Estado, e não deste ou daquele governo”, diz o advogado Sebastião Tojal, que negociou os acordos de leniência da UTC e da Andrade Gutierrez. Mas, segundo ele, “falta vontade política”. “Inviabilizar os acordos significa inviabilizar o avanço das investigações da Lava-Jato, porque impede que novas provas sejam utilizadas. A quem interessa que isso aconteça?”, questiona Tojal. Na visão de executivos envolvidos nas negociações, esse é o ponto: sob a alegação de cumprirem procedimentos formais e defenderem os interesses da União, os órgãos de defesa do Estado estariam, em seu jogo de empurra, colocando obstáculos aos acordos para retardar as investigações que chegariam a políticos da alta esfera do poder. Esse impasse tem consequências nocivas para as empresas e a própria economia. Além de serem impedidas de retomar contratos com a esfera pública, as companhias não conseguem renegociar suas dívidas. “Os questionamentos podem inviabilizar a venda de ativos”, diz a advogada Fabíola Cammarota, sócia do escritório Cescon Barrieu. “A leniência deve dar segurança jurídica.” É o oposto do que acontece quando o TCU decide cobrar valores que não foram contemplados nos acordos. Com dívidas de 3,4 bilhões de reais, a UTC pediu recuperação judicial em julho de 2017, no mesmo mês em que acertou a leniência com a CGU. Como se vê, a ciranda sem fim das empresas no labirinto do “sistema U” interessa principalmente àqueles empenhados em acobertar os desvios. __________________________________________ 6# GERAL 2018.04.04 6#1 PÁGINA ABERTA – O MAL DO PROTECIONISMO 6#2 COMPORTAMENTO – A BOA MORTE 6#3 PRIMEIRA PESSOA – “EU ME SINTO MAIS JOVEM” 6#4 GENTE 6#5 ESPECIAL – BOM É NASCER LIVRE 6#6 CIÊNCIA – AS RAÍZES DE 13 MILHÕES DE DNAS 6#7 MODA – UMA JOGADA DE CLASSE 6#8 ESPORTE – ELAS QUEREM SER MARTA 6#1 PÁGINA ABERTA – O MAL DO PROTECIONISMO Para fomentar a retomada da economia mundial, é preciso evitar a hedionda experiência protecionista do período entreguerras. Culpar o inimigo externo é saída fácil, mas inócua. ROBERTO AZEVÊDO * Roberto Azevêdo, diplomata, é diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), em Genebra. AS ÚLTIMAS SEMANAS foram marcadas por crescentes tensões comerciais no cenário internacional. A situação é preocupante. Uma escalada de medidas restritivas ao comércio teria sérias consequências para a economia global, em especial neste momento de frágil recuperação. Além disso, tal cenário tenderia a exacerbar sentimentos nacionalistas de intolerância, bem como instabilidades geopolíticas. O sistema multilateral de comércio foi criado em 1947, logo após a II Guerra, precisamente para evitar a repetição daquela hedionda experiência e para fomentar a recuperação da economia mundial. Ele foi assentado sobre o princípio de que a estabilidade e o crescimento econômico global dependem da colaboração entre os países. Buscava-se um sistema estável, previsível e que evitasse o caminho do unilateralismo e da lei da selva nas relações comerciais. Nos dias atuais, a Organização Mundial do Comércio (OMC) é o pilar central dessa doutrina. Ela zela pela observação das normas acordadas pelos seus 164 membros. Em casos de divergências comerciais, a OMC dispõe do mais eficaz e ágil sistema de arbitragem entre Estados. A prova de fogo para a OMC foi a eclosão da crise financeira de 2008. A severa recessão dela resultante parecia querer replicar o cenário dos anos 30. Vivemos o temor de uma escalada protecionista de proporções mundiais. Vários países, inclusive tradicionais defensores do livre-comércio, passaram a cogitar barreiras para proteger o produtor doméstico e medidas de estímulo à compra de produtos nacionais. Essa ameaça era muito real, mas não se concretizou. Todas as medidas restritivas nessa área adotadas desde 2008 não afetam mais que cerca de 5% do comércio mundial. Na década de 30, dois terços do comércio global desapareceram em três anos apenas. Uma das principais diferenças entre as duas situações é que, naquela época, não tínhamos a OMC. Desta vez, ela impediu a proliferação de medidas unilaterais no pós-crise. Os governos hoje conhecem as regras e se vigiam mutuamente. Não fosse a OMC, certamente já estaríamos em uma guerra comercial há alguns anos. Mas as atuais tensões comerciais mundo afora têm raízes em um contexto mais amplo, que não está restrito ao comércio. O mundo está mudando rapidamente — impulsionado em grande parte pela tecnologia e pela inovação. E as perturbações econômicas causadas por essas rápidas mudanças, sobretudo no mercado de trabalho, são um fator decisivo por trás das turbulências comerciais. É evidente que o progresso tecnológico não é um fenômeno novo. Mas a velocidade e o alcance do que estamos vendo hoje são sem precedentes. E estamos apenas no início dessa “Quarta Revolução Industrial”. A tecnologia e a inovação são responsáveis por cerca de 80% dos empregos perdidos na indústria de transformação. Recentes estudos demonstram que quase dois terços dos empregos industriais existentes podem ser automatizados — mais de 230 milhões de postos de trabalho. No Brasil, isso representa cerca de 11 milhões de vagas. Esses empregos não partem para o estrangeiro e não voltarão com medidas de proteção comercial. Eles simplesmente não existem mais. Mais empregos são criados que perdidos com inovações. Mas o trabalhador que perde o emprego para novas tecnologias não é o que ocupará a posição criada nos setores de ponta. As tensões laborais decorrem de uma mudança estrutural no mercado de trabalho. As políticas tradicionais precisam ser repensadas. Boa parte da resposta está na política interna. Cada país encontrará a própria receita, mas o caminho seguramente passará por reformas no sistema educativo e no treinamento do trabalhador. Os programas de Previdência Social também terão de responder aos desafios de um mercado de trabalho em rápida transformação. São desafios gigantescos que não têm sido discutidos a fundo. Apesar da evidente complexidade dessa questão, culpar o inimigo externo é uma narrativa com maior apelo popular. É mais fácil culpar o imigrante ou o produto importado pelo desaparecimento de postos de trabalho. No ano passado, a OMC tratou dessa questão no seu relatório anual, dedicado especificamente ao tema de comércio, tecnologia e empregos. Além de exercer suas funções tradicionais de monitoramento, negociações e solução de controvérsias, a organização acompanha as mais marcantes tendências mundiais. Busca diagnosticá-las e propor soluções apropriadas. Um diagnóstico equivocado da situação que vivemos globalmente conduzirá ao protecionismo e ao unilateralismo. O protecionismo criará mais distorções, ineficiências, e destruirá empregos. O aumento de tarifas na importação e o encarecimento da cadeia produtiva equivalem a um imposto adicional sobre o consumidor. Em última instância, confisca parte do salário do trabalhador. Por sua vez, o unilateralismo rejeita toda a base de sustentação do sistema de governança global instaurado no pós-guerra. Abandona o conceito de maximizar o desenvolvimento por meio da cooperação internacional e favorece a lógica do jogo de soma zero. O unilateralismo é mais atraente em tempos de instabilidade e de dificuldades. Torna-se politicamente custoso “ceder soberania” ao processo multilateral, mais lento e árduo por natureza. É uma opção mais viável para os países que têm capacidade de influir nos rumos do debate por força do próprio peso específico. Entretanto, o unilateralismo não é unidirecional. Uma medida unilateral tende a ser respondida na mesma moeda por outros capazes ou dispostos a sustentar o confronto. Em um mundo economicamente multipolar, o potencial de escalada é real. Com a lei da selva na arena econômica e comercial, mesmo os mais fortes saem perdedores. O exercício do multilateralismo, porém, não é fácil. Requer compromisso contínuo de todos. Demanda consciência coletiva e visão estratégica de longo prazo. Exige muito mais diplomacia, negociação, conversa. É mais lento. Existirá sempre a tentação de tomar as rédeas e tentar resolver as coisas sozinho, sem ter de passar pelas “dores” do multilateralismo. A OMC é um recurso inestimável. Garante estabilidade e segurança aos negócios, permitindo enormes avanços econômicos, em países desenvolvidos e em desenvolvimento. O que não significa que não deva seguir se atualizando e reformando. O sistema precisa modernizar rapidamente suas normativas para dar tratamento adequado à realidade deste mundo cada vez mais integrado e digital. Seu sistema de arbitragem precisa continuar oferecendo uma forma eficaz de despolitizar e resolver controvérsias. Estamos trabalhando duro em Genebra para alcançar essas metas. Temos feito progresso, ainda que muitas vezes fora do radar da opinião pública. Tenho conversado intensamente com todas as partes sobre nossos desafios principais: modernizar o funcionamento da organização e evitar as tentações do protecionismo e das medidas unilaterais. Em vez de aumentarmos as tensões, precisamos encontrar maneiras de resolvê-las. Aquilo de que o mundo precisa é uma OMC fortalecida. Aquilo de que o mundo não precisa é uma guerra comercial, com consequências nefastas para todos, sem exceções. 6#2 COMPORTAMENTO – A BOA MORTE Ana Beatriz Cerisara, a professora que decidiu não fazer tratamentos contra um câncer terminal, deixou um sereno ensinamento sobre o próprio fim. ADRIANA DIAS LOPES EM AGOSTO do ano passado, VEJA passou dois dias com a professora gaúcha Ana Beatriz Cerisara, então com 60 anos, a convite dela e com a concordância da família. Ana Bea estava em estágio terminal de um triplo câncer no intestino. Resolvera não se submeter a nenhuma cirurgia e deixar a vida seguir seu curso natural. Queria contar sua história. “A decisão de abrir mão da cirurgia me deu calma”, disse, ao enxergar a finitude com serenidade. “Estou pronta para morrer. Não estou desistindo. Apenas não quero ficar viva a qualquer preço.” Do encontro em Florianópolis, na casa da professora, nasceram uma reportagem publicada em dezembro e um vídeo postado no Facebook, que atraiu enorme atenção — chegou a 9,6 milhões de visualizações e 130.000 compartilhamentos. Houve comoção ante a sinceridade cortante de uma mulher que decidira enfrentar a morte com a vida. Em suas palavras: “Quero ter uma boa morte, mas sei que para isso tenho de ter uma boa vida”. Há duas semanas, VEJA foi convidada a visitar novamente Ana Beatriz. Ela sabia que lhe restava pouco tempo. Contou mais de sua extraordinária experiência pessoal ao se despedir de tudo. Contou — e morreu na madrugada do sábado 24 de março, aos 61 anos, seis dias depois do derradeiro contato com os repórteres da revista. Estava fraca. Perdia o fôlego para executar as tarefas mais simples, como tomar banho e comer. Mas se mostrava ainda mais tranquila do que nas primeiras conversas, ainda mais segura da decisão de não se submeter a nenhum tipo de tratamento fútil. “Estou morrendo. Não sinto dor. Que morte maravilhosa. Estou mais viva do que nunca”, disse. O depoimento completo está no site de VEJA. A professora fez um único pedido na aproximação com os jornalistas: que a reportagem e o vídeo sobre seus instantes finais só fossem divulgados depois de sua morte. Ela sucumbiu à anemia, e não a outros sintomas mais agressivos do câncer de intestino, como a oclusão intestinal ou a falência hepática por metástase. Nas últimas duas semanas, a fraqueza foi se instalando progressivamente. Em 8 de março, não conseguiu mais subir a escada até seu quarto. Sua cama foi então transferida para o térreo da casa. No dia 21, depois do último banho de chuveiro, não saiu mais da cama. Pediu ao filho, Cauê, de 36 anos, que dormia a seu lado havia duas noites, que a deixasse a sós. Também não queria mais ouvir os barulhos que dão vida a uma casa, como o som da louça sendo lavada ou do liquidificador ligado. No dia 22, disse que não queria decidir mais nada. Suas duas últimas palavras foram uma brincadeira dirigida a Sandra, a prima que a acompanhava: “Desenruga, baixinha”. Não reclamou nenhuma vez de dor. Morreu dormindo. Teve a chamada “boa morte”, cuja expressão em grego, eutkanatos; está na mesma raiz da palavra eutanásia. Convém ressaltar, contudo, que a morte de Ana Bea foi outra coisa, não uma decisão médica destinada a abreviar sua vida. A eutanásia é proibida no Brasil. Para muitos, vai contra os benefícios proporcionados pelos recursos da ciência, além de ser repudiada por algumas religiões. Ana Bea não interrompeu uma vida terminal. Decidiu simplesmente vivê-la, até que a morte chegasse com naturalidade. Diz Ana Claudia Quintana Arantes, geriatra da Casa do Cuidar e do Humana Vida e médica de Ana Bea: “Os tratamentos que poderiam ser oferecidos para a doença não permitiriam a qualidade de vida que ela usufruiu”. A boa morte tem conquistado espaço na medida em que vai deixando de ser tabu. Nela abandonam-se os medicamentos porque não há cura, mas qualquer dor ou sofrimento são aliviados. Ana Bea não sentiu dores. Nos últimos momentos, teve desconforto respiratório e recebeu doses de morfina. A dor de doentes em fase terminal só passou a ser combatida no fim da década de 60, com a humanização da medicina. Uma das primeiras especialistas a esboçar esse tipo de tratamento como uma área com fronteiras próprias, o chamado tratamento paliativo (do latim pallium, manto), foi a médica inglesa Cicely Saunders (1918-2005). Ao cuidar de homens com câncer avançado, ela se sensibilizou com o padecimento a que assistia e criou um instituto especializado em atenuar os sintomas dos doentes terminais, o St. Christopher’s Hospice, hoje uma referência mundial. Disse Ana Bea, num resumo do que imaginava legar: “É tão bom chegar aqui desse modo; estou realizando o sonho da minha vida morrendo dessa forma”. 6#3 PRIMEIRA PESSOA – “EU ME SINTO MAIS JOVEM” TEM A “DI MENÓ”, uma menina de 17 anos, a Codorninha, o Sedução, e eu sou o Juventude. Os veteranos me deram a plaquinha de papelão com esse apelido no primeiro dia de aula do curso de arquitetura no Centro Universitário Barão de Mauá, aqui em Ribeirão Preto. É o trote dos calouros, então temos de pendurar a folha no pescoço em todas as aulas. Muitos já pararam de usar, mas vou esperar até que me mandem tirar a minha. Sou desenhista por formação técnica. A vida inteira trabalhei como um profissional da área de construção, mas não tinha o diploma universitário. Agora, aos 90 anos, decidi prestar vestibular para buscar o título. A prova não foi difícil. Adoro ver artigos acadêmicos e, dias antes do exame, li um sobre consumismo — justamente o tema que caiu na redação. Dei sorte. Eu me iniciei na atividade de desenhista aos 22 anos. Passei 35 anos trabalhando na Universidade de São Paulo. Uma das tarefas que recebi na USP foi transformar a maternidade mantida pela indústria de açúcar Sinhá Junqueira no Hospital das Clínicas. Uma adaptação gigantesca. Tivemos de desmanchar um canto, construir outro, ampliar, converter salas em consultórios, centro cirúrgico, laboratórios de esterilização. Eu desenhava e, claro, o engenheiro revisava e assinava o projeto final. Era uma dificuldade imensa, porque eu só sabia desenhar casas, mas precisei enfrentar uma porção de outras situações. Comecei a pensar em frequentar a universidade muitos anos atrás, mas acabei protelando, porque surgiram outros compromissos financeiros, como a faculdade da minha esposa, Nice, que morreu faz dez meses. Nós tivemos quatro filhos. Primeiro, a Lúcia e o Carlito. Tempos depois, o cacique de uma tribo xavante da Serra do Roncador, em Mato Grosso, que era amigo de um amigo, me procurou. Ele trouxe um menino aqui na porta para eu e a Nice criarmos, ensinarmos a ler, a fazer conta. A ideia era que, depois que ele aprendesse tudo, voltasse para a aldeia, a fim de ajudar no cultivo de arroz. Seu nome era Wauenru Otomopá, mas adotou o nome de Roberto. Mais tarde veio também o Paulo, que virou cacique. Os dois foram embora para a tribo ao completar 14 anos, para se casar. Cada um tem duas mulheres hoje. Eles dizem que os filhos deles são meus netos. Somando, deve dar umas vinte crianças. E ainda tenho oito netos e quatro bisnetos dos dois primeiros filhos. Quando vem todo mundo aqui, até tiro meu aparelho de surdez. É muito barulho. Nem sei se vou conseguir chegar ao fim da faculdade. É duro estar aposentado desde os 56 anos e voltar a exigir do raciocínio. Em aulas teóricas, usam uns termos que nem sempre entendo. Na parte prática, sei mais do que estão ensinando, mas não fico me gabando. Quando os professores perguntam se tenho a habilidade de fazer tal coisa, finjo que só conheço mais ou menos. Dia desses, um professor pediu que eu desse assistência à menina que estava sentada ao meu lado, e ensinei a ela como usar o compasso — a ponta “cega” fica fixa no papel, e a outra gira em volta, riscando um círculo. Tenho aula todos os dias, das 19h30 às 23 horas. E também no sábado de manhã, ocasião em que algum familiar me leva de carro. Noutro dia, ninguém acordou, então chamei um táxi e fui sozinho. Ficaram doidos atrás de mim. Ué, eu estava na faculdade. Minha filha falou para eu pegar menos matérias por semestre, mas eu disse a ela que, se não aguentar, paro e continuo em outra oportunidade. Certamente começar a estudar não foi um erro. O pessoal me trata bem, e eu me sinto mais jovem convivendo com a molecada. Qualquer hora vou fazer todos os colegas da turma escrever seus nomes na minha plaquinha de calouro. Quero guardar de recordação. Depoimento dado a Mabi Barros 6#4 GENTE BRUNO MEIER e Eduardo F. Filho “SOU CURINGA” Ex-integrante do Porta dos Fundos, a fluminense JÚLIA RABELLO ingressou no GNT em 2016 para estrelar a série De Perto Ninguém É Normal. “Ela é versátil”, elogia Daniela Mignani, diretora do canal pago. Pois a versatilidade está à prova: além de fazer a segunda temporada da série, Júlia participa do reality Que Marravilha!, dando uma mãozinha ao chef Claude Troisgros. Também comanda Fale Conosco, programa em que a conversa com celebridades é pautada pelo que se comenta sobre elas na internet. “Sou curinga”, diz. Ex-mulher do ator Marcos Veras, Júlia não engatou um novo romance desde o divórcio, mas jura que seu coração “está ótimo, maravilhoso”. “O que não está muito bom é o colesterol”, lamenta. SEXO FLUIDO Sem experiência na TV, o ator potiguar PEDRO FASANARO surpreendeu quem assistiu aos testes para a série Onde Nascem os Fortes, que estreia em abril, na Globo. Fasanaro escolheu o texto de uma personagem feminina para se apresentar à produtora de elenco Marcela Bergamo. “Tenho consciência de que fui ousado”, diz. O papel em questão ficou com a atriz Carla Salle, mas os autores George Moura e Sérgio Goldenberg acharam uma solução para aproveitar o ator: criaram uma história para o recepcionista de um hotel, que a priori daria apenas bom-dia aos personagens. Aos 21 anos, o ator vive na chamada “sexualidade fluida”. Afirma que chegou a se considerar transexual, mas hoje se defina “entre os dois gêneros”. “Meu negócio não era nem um nem outro. Namoro um menino, mas nada impede que eu me sinta atraído por uma menina.” O PREÇO DA MALDADE Quando era Bia, a malvada de Malhação, FERNANDA NOBRE sentiu que interpretar uma vilã tem seu preço. As pessoas não tinham, como hoje, contato com os atores pelas redes sociais. Então, corriam atrás de mim na rua, para me bater por causa das minhas maldades” lembra. Depois, a atriz fez papéis importantíssimos” (expressão dela) na Record. De volta à Globo depois de treze anos, está em Deus Salve o Rei. Aos 34 anos, 25 de carreira, ela vê um mercado em que os atores já não são fixos das emissoras. Agora, a maioria só tem contrato por obra.” CAIU NAS REDES 15 ANINHOS. Discreta e sem planos de enveredar para o meio artístico, SOPHIA RAIA surpreendeu ao surgir na rede de um amigo. Sim, ela é filha dos atores Claudia Raia e Edson Celulari Curtidas: 13.700 A VITÓRIA DE FERNANDA FERNANDA MONTENEO aceitou o convite de Breno Silveira (de 2 Filhos de Francisco) para estrelar o novo filme do cineasta. A atriz, de 88 anos, viverá a alagoana Vitória (nome fictício), aposentada que, em 2003 e 2005, filmou da janela de seu apartamento, de frente para a favela na Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana, o trânsito livre de traficantes armados e o consumo de maconha, cocaína e crack entre crianças e adolescentes — tudo com a cumplicidade de policiais. Feitas com uma câmera comprada a prazo, as imagens desmontaram uma quadrilha carioca. As filmagens de Dona Vitória, título provisório, devem acontecer no segundo semestre de 2019. Depois da novela O Outro Lado do Paraiso, Fernanda percorrerá o país para o lançamento da biografia fotográfica que lançará na Flip e na Bienal do Livro de São Paulo. 6#5 ESPECIAL – BOM É NASCER LIVRE O bairro de Soweto, onde uma matança de crianças abriu os olhos do mundo para o apartheid, virou cartão-postal da África do Sul em transformação. Até uma vizinhança abastada, a “Beverly Hills”, existe por lá. MONICA WEINBERG, de Joanesburgo Quem olha para a África do Sul de hoje acha que o país anda para trás. Do time dos Brics, como o Brasil, a nação de Nelson Mandela sacolejou nas últimas semanas com o fim da era Jacob Zuma, o presidente que foi forçado a renunciar e agora é investigado por uma avalanche de denúncias de corrupção. No Parlamento, uma lei recém-aprovada revolveu o caldeirão racial ao permitir o confisco de propriedades de brancos, e sem indenização. A economia patina, o desemprego sobe. No entanto, uma visita ao local que virou símbolo das aberrações do apartheid, o célebre subúrbio de Soweto, a meia hora do centro de Joanesburgo, revela quanto a África do Sul avançou desde que derrotou o antigo regime de segregação dos negros, em 1994, e começou a construir um outro país, certamente menos racista. Foi há pouco mais de duas décadas — um soluço no curso da história. Soweto entrou no mapa quando jovens estudantes se ergueram contra o regime e foram trucidados por uma repressão brutal. O massacre aconteceu em 16 de junho de 1976 e exibiu ao mundo imagens de crianças abatidas pelas armas do apartheid, que acabou imprensado por um boicote internacional. Maior gueto daqueles tempos sombrios, Soweto se tornou então um marco da resistência. Foi também o lugar onde Mandela, ex-presidente e Nobel da Paz, morto em 2013, começou a costurar a luta contra a supremacia dos brancos. A casa onde ele (que faria 100 anos em julho) viveu por quase duas décadas ainda está lá, convertida em festejado museu, assim como a Orlando West High School, escola onde se iniciou a matança de 1976. Seus atuais alunos, integrantes da geração born free (nascida livre) dos tentáculos do apartheid, aprendem sobre o levante na aula de história e têm altos planos para o futuro. “Para os que nasciam aqui, o objetivo era sobreviver. Agora é estudar e crescer na vida”, diz o economista Lumkile Mondi. A paisagem das South Western Townships, conjunto de distritos de cujas iniciais nasceu o nome Soweto, é cheia de contrastes. Pulsante centro de compras de fachada arrojada, o Maponya Mall não fica muito longe do Bagdá, um mercadão a céu aberto onde se vendem ferramentas, fraldas de bebê e galinhas. Barracos brotam na esteira da falta de emprego, mas a vizinhança endinheirada de “Beverly Hills” (apelido um tanto superlativo) está ali para lembrar que é possível encontrar maneiras de ter uma boa vida. O Soweto Country Club oferece grama novinha aos praticantes de golfe. Carros importados fazem a festa dos lava-jatos, um tipo de negócio que prospera na Soweto de hoje. O PH Network Sportsbar é um dos pontos de concentração da cúpula local do Congresso Nacional Africano (o CNA, que chegou à Presidência com Mandela e está lá até hoje) e de uma vibrante classe de empreendedores. “Quem investe em Soweto olha para o mercado interno e o externo, os turistas que não param de chegar”, diz Wesley Mofokeng, de 41 anos, que, sim, já teve um lava-jato, mas agora trabalha no departamento de educação em Pretória, a sede do poder. Os donos dos maiores negócios são negros que escaparam das ganas do apartheid, fizeram dinheiro fora e voltaram para o país, ou os que tiveram a veia para empreender potencializada pelo farto crédito distribuído com o fim do regime. “Eles querem se mostrar, se exibir. É o Soweto celebração”, define o sociólogo Thembani Nyoni. Como um espelho da África do Sul, o subúrbio ainda tem mais de metade de seus habitantes na pobreza, mas a imensa maioria dos born frees tem acesso pelo menos ao básico — casa, água encanada, saneamento, eletricidade. Antes, as duas altas torres de energia da área abasteciam lares de brancos em outras partes, enquanto os negros ficavam à mingua. Hoje, desativadas, são coloridas, grafitadas e se prestam à prática do bungee-jump. O progresso no que há de mais elementar à sobrevivência contribuiu para derrubar a assombrosa taxa de mortalidade infantil no primeiro ano de vida de 58 para 34 a cada 1000 nascidos — índice registrado em Soweto e, também, na África do Sul como um todo. A queda ocorreu ao longo de uma década, mas a taxa continua elevada. No Brasil, são catorze mortos para cada 1000 nascidos. O vírus HIV, que atinge 30% das mulheres grávidas, contribui para inflar a estatística. Percebe-se um esforço para acolher crianças pequenas em creches e pré-escolas, um bom começo para romper o ciclo da pobreza. Mesmo que o melhor ensino de Joanesburgo ainda se concentre em outras áreas, Soweto tem as portas da educação abertas — e a nova geração do antigo gueto atribui a isso um valor especial. “Meus pais mal pisaram numa sala de aula. Já eu quero estudar matemática ou filosofia, talvez os dois”, afirma Thato Mahlatsi, de 17 anos, um dos melhores alunos da Orlando West High School. E qual a diversão desses jovens? A mesma de qualquer adolescente de classe média no Brasil. Mahlatsi vai ao estádio de futebol assistir ao clássico Orlando Pirates versus Kaizer Chiefs (e isso é “cool, oh man”), devora séries americanas, vive atracado ao celular e não encontra muito estímulo na política, embora escute falar em casa dos horrores que os pais e avós sentiram na pele. “Eles gostam muito mais de festa do que do debate político”, diz Joseph Malindi, de 60 anos, diretor da Orlando West. Nos tempos de segregação, vigoravam dois sistemas na educação: o dos brancos e o dos negros — este baseado na ideia de que eles não precisavam ser ensinados a desempenhar tarefas elaboradas. Muitos não tinham aula de ciências nem de matemática. Em seus colégios estavam os piores professores. As classes reuniam cerca de 100 alunos de idades misturadas, que se revezavam para conseguir um canto na sala superlotada — assim o turno escolar não passava de duas, três horas por dia. Os negros pagavam pelos livros, os brancos não. Um dia, suprimiram a 1ª série do ensino fundamental da grade das escolas Bantu, como eram conhecidas. Depois veio a imposição de ensinar as matérias, já dadas em inglês, também em africâner, língua que tem na raiz o holandês dos colonizadores. Math (matemática, em inglês) virou rekenkunde, e ninguém entendia mais nada. “Eu estava começando a aprender a escrever, e eles mudaram o idioma na escola”, lembra Thomas Ntuli, de 49 anos. Em protesto, os alunos fechavam os livros. Foi o estopim para o levante de Soweto. Que ninguém espere encontrar nessas bandas, onde reside atualmente 1,5 milhão de pessoas (98% negros, um sexto da população da Grande Joanesburgo), o caos urbanístico de uma favela brasileira. O local nasceu de uma ação coordenada do governo segregacionista para manter os negros longe das áreas ocupadas pelos brancos, mas ainda próximos do centro, de modo que pudessem atender à demanda por braços de um país que se industrializava. Para os negros, havia uma rota só — casa-trabalho-casa, por uma única via que percorriam carregando um passe que limitava sua locomoção. Nos anos 1960, os negros de outras áreas eram deportados para Soweto e instalados em casas, todas iguais umas às outras. O cirúrgico planejamento do passado deu lugar a um efervescente fluxo de imigrantes de todo o continente, magnetizados pelas promessas (nem sempre concretizadas) da nação que se autoproclama um “arco-íris”, devido à sua variedade étnica. A economia cambaleante aparece na elevada porção de desempregados — 28% hoje no país. Alguns que tinham subido caíram. “Trabalhava servindo chá no centro da cidade, mas me dispensaram e tive de vender minha casa”, lamenta Mercy Viryelwa, de 55 anos, que se mudou para um barraco de chapa de zinco onde abriga as netas Siphokazi e Soyama, de 4 e 6 anos. Diz Soyama, com jeitinho adulto: “A situação vai melhorar”. As garotas estão matriculadas em uma pré-escola, mas Mercy se preocupa quando brincam na rua. Sempre houve gangues em Soweto — que subornavam a polícia em troca de não ser incomodadas —, mas eram menores. Elas cresceram, ganharam envergadura e andam faturando alto com o comércio de drogas, em especial de nyaope (explosiva mistura de heroína, ácido e veneno de rato). “Às vezes ouvimos tiros e corremos para dentro de casa”, diz Jenine Thomas, de 33 anos, mãe de quatro filhos, apertando no colo Blaine, o caçula de 2 meses. O mapa de Soweto parece um xadrez harmonioso de etnias — zulus, xosas, sotos — agrupadas em vizinhanças. Mas o apartheid deixou marcas fundas que até hoje influem no convívio em sociedade. Quando o regime implodiu, Mandela, o primeiro presidente negro do país, implantou políticas afirmativas que viriam a se ampliar. Atualmente, empresas públicas devem empregar 80% de negros (a mesma proporção em que aparecem na população) e as companhias que negociam com o governo precisam tê-los como donos de pelo menos 26% das ações. A minoria branca se queixa do que muitos chamam de nova segregação. “Os brancos eram cidadãos de primeira classe e os negros, de terceira. A história está virando”, diz Freda Smith, de 67 anos, moradora de Soweto, que se posiciona, ela mesma, na “eterna segunda classe”, a dos pardos. “Antes não éramos brancos o suficiente; agora não somos negros o suficiente”, resume ela, que custou mas se acostumou aos novos ventos. “Passava por um branco na rua, olhava para o chão para não encará-lo nem ofendê-lo e mudava de calçada. Era automático. Fui me adaptando à liberdade.” Quando o apartheid ruiu, o governo decidiu canalizar vultosos investimentos para Soweto, com a ideia de fazer do ex-gueto a vitrine do novo país. Virou atração turística. O coração do roteiro que atrai estrangeiros é a Rua Vilakazi, justamente onde, no número 8115, viveu Mandela — sua polêmica ex-mulher e parceira de ativismo, Winny, ainda mora no bairro. Um pouco mais adiante na Vilakazi está a antiga casa do bispo Desmond Tutu, outro Nobel da Paz. Professora de uma creche que funciona dentro de uma igreja perto dali, Pisokuhle Mdzebu, de 29 anos, exibe o barrigão de nove meses nesta terra quente, colorida e musical. Mãe de uma menina de 6 anos, ela tem os olhos fixados no futuro: “Meus pais não estudaram e eu parei antes da faculdade, mas meus filhos certamente terão muito mais”. A nova geração ainda canta a música-hino Another Brick in the Wall, do Pink Floyd, cujo refrão diz “hey, teachers, leave them kids alone” (“professores, deixem as crianças em paz”), inspirada na Soweto do levante. Mas não é mais pela letra, apenas pela bela melodia. MELHOR COMEÇAR PELO COMEÇO Ao largar o emprego de executiva em uma empresa de turismo para abrir uma escolinha em Joanesburgo, Julia Muteba, de 42 anos, foi imediatamente rotulada de louca. “Vai passar a vida tomando conta de criança? Isso é o mesmo que ser dona de casa”, ouvia, sem nunca vacilar: “Acho que sou boa nisso. Posso fazer diferença”. A iniciativa de uma turma como ela, bem preparada e com pendor para o empreendedorismo, está ajudando a África do Sul a atacar uma questão fundamental: oferecer boas creches e pré-escolas de modo a dar às crianças o incentivo certo na hora certa, já nos primeiros anos de vida — preocupação relativamente nova por lá, assim como no Brasil. Nas altas-rodas acadêmicas, porém, não há dúvida de que essa é a trilha mais eficaz para guindar um país aos mais elevados patamares. “Um bom começo é vital para formar gerações saudáveis, produtivas e capazes de inovar”, diz André Viviers, especialista em desenvolvimento da primeira infância no Unicef. Na África do Sul, o ensino só é obrigatório a partir dos 6 anos (no Brasil, é aos 4), o que significa que o Estado não tem responsabilidade pela educação antes dessa idade — e as iniciativas existentes são tocadas por gente que vê nisso uma missão, um negócio, ou os dois. Desse jeito, surgiu um sistema (se é que se pode chamar assim) insuficiente na abrangência e heterogêneo na qualidade, que avança pouco a pouco. O país tem 42% de seus 7 milhões de crianças de até 6 anos fora da sala de aula. Até 2030, o governo tem um plano para colocar 100% das crianças a partir do primeiro ano de vida na escola. Para acelerarem o processo, os sul-africanos encontraram um jeito de lidar com a escassez de escolas para crianças pequenas justamente impulsionando investimentos como o de Julia — um modelo que pode servir de inspiração para o Brasil, onde quantidade e qualidade nesse terreno também custam a germinar. Como é caro e lento erguer uma rede decente em grande escala, a África do Sul abriu os cofres federais para pôr dinheiro nas creches e pré-escolas privadas já existentes. As contrapartidas são a obediência a certos padrões de infraestrutura e o treinamento de seus profissionais. Mais e mais gente tem apostado na primeira infância. Sim, o sistema que emerge daí é heterogêneo no tamanho das escolas e no nível de excelência — algo que vai demandar uma depuração. Às vezes, mesmo com todos os controles e peneiras (nem sempre tão eficientes quanto deveriam ser), nascem estruturas excessivamente caseiras, incapazes de fomentar aquilo de que precisam. O resultado é uma armadilha para qualquer país: nove de cada dez meninas e meninos entram na 1ª série do ensino fundamental sem o preparo ideal para enfrentar os desafios intelectuais que os aguardam, fragilidade que se percebe sobretudo entre os mais pobres, segundo relatório do próprio governo. Aos 70 anos, sem emprego mas com uma boa casa, Ana Evelyn Matsoso está prestes a receber o benefício do governo para sua creche, que funciona entre um cômodo e outro tomados de bibelôs e quadros nas paredes, como o bem emoldurado diploma escolar do neto mais velho. “Educação é uma coisa que eu valorizo, que eu sempre quis e não tive para mim. Agora vou oferecê-la a quem não tem”, diz ela. Um labirinto burocrático a separa dos recursos federais. “Exigem uma papelada enorme. Cada departamento quer ter protagonismo, e um acaba se sobrepondo ao outro”, avalia Nicole Biondi, da Innovation Edge, que apoia a inovação nessa área com fundos como o do eBay. A briga pelos holofotes oficiais é familiar aos brasileiros. “Para chegarmos a algum lugar, precisamos costurar melhor as várias alçadas envolvidas no cuidado da criança” admite Lesley Bamford, do Ministério da Educação sul-africano, Se o país quiser mesmo fazer jus à auto-proclamada “nação arco-íris terá de necessariamente começar pelo começo. O mesmo vale para o Brasil. 6#6 CIÊNCIA – AS RAÍZES DE 13 MILHÕES DE DNAS Cientistas reúnem onze gerações de pessoas numa única árvore genealógica. As informações ajudam a compreender o passado e o presente da humanidade. ANDRÉ LOPES A DESCOBERTA da molécula do DNA, em 1953, que levaria os biólogos Francis Crick e James Watson ao Nobel de Medicina, foi o mais extraordinário avanço para entendermos de onde viemos, um atalho para medir os passos inaugurais da história da humanidade. Em 2001, depois que se concluiu o primeiro sequenciamento dos genes humanos, os pesquisadores começaram a usar esse notável levantamento para compreender quais características são hereditárias. Sabe-se, hoje, que não apenas atributos mais evidentes, como a cor dos olhos, são transmitidos geneticamente. Também pode vir de pai para filho a predisposição a doenças como Parkinson e câncer, ou à obesidade, assim como a tendência a se sair melhor em determinado esporte. No mês passado, foi anunciada outra vitória nesse campo do conhecimento humano; um estudo da Universidade Colúmbia, em Nova York, compilou as informações genéticas de 13 milhões de pessoas, de onze gerações, em uma mesma árvore genealógica. O maior mapeamento genético já realizado, um feito de proporções homéricas, pode levar a conclusões surpreendentes acerca da evolução humana. O trabalho foi possível graças à reunião de 86 milhões de perfis cadastrados no site israelense Geni, no qual pessoas oferecem voluntariamente algumas de suas informações genéticas em troca de dados que possam levar à descoberta de parentes distantes. Como a página é mais usada por europeus e cidadãos de países da América do Norte, 85% dos indivíduos participantes moram ou moraram nesses continentes. Foram considerados, então, apenas aqueles ligados por algum traço mínimo de relação genômica. Chegou-se assim ao número de 5 milhões de famílias interconectadas, totalizando os 13 milhões de pessoas de onze gerações — a mais antiga data de 1492 (veja o mapa). Estima-se que, caso se quisesse achar uma raiz comum a todas as linhagens incluídas, seria preciso voltar mais 65 gerações até o antepassado único — um objetivo hoje inviável cientificamente, pois ainda não é possível coletar informações de DNAs tão antigos. Os geneticistas envolvidos, no entanto, sonham chegar um dia a esse parente comum a todos os 13 milhões nomeados no levantamento. Disse a VEJA a geneticista Joanna Kaplanis, líder do estudo da Colômbia e membro e pesquisadora do Centro de Genoma de Nova York: “Agora abrimos à comunidade científica os dados que conseguimos, para explorar o que se pode descobrir com eles”. Joanna e sua equipe já chegaram a algumas conclusões curiosas. Em uma delas, percebeu-se em que momento da civilização se deu um boom na variedade genética das populações. Foi em cerca de 1750. Antes desse longínquo período, os habitantes da América do Norte costumavam se casar com pessoas que moravam a no máximo 10 quilômetros de distância. A partir de então, conforme eles aprimoravam tecnologias como as de transporte urbano, o limite se estendeu, até alcançar uma média de 100 quilômetros em 1950. Esse movimento em busca de parceiros fora da vizinhança levou à diversificação genética. Fundamentalmente, proporcionou encontros entre etnias distintas e fez desaparecer — ou ao menos transformou em tabu — o casamento entre membros de uma mesma família, algo que era bastante comum até então. Os cientistas conseguiram ainda avaliar, com a profusão de dados que reuniram, se a longevidade seria também transmitida como uma herança genética. Os resultados trouxeram um dado novo: mostraram que a genética contribui com cerca de 16% dos elementos que levam a uma vida duradoura. “Ao contrário do que acadêmicos achavam antes, concluímos, com esse compêndio, que ter uma rotina saudável é muito mais decisivo para a sobrevivência do que possuir genes privilegiados”, ressalta a geneticista Joanna. O levantamento agora deve servir de base para a abertura de novíssimas avenidas de investigação. Diz Joanna: “As informações cruas podem impulsionar buscas por uma infinidade de respostas. Pode-se usá-las, por exemplo, para analisar como se deram conflitos sociais, as curvas das taxas de fertilidade, as epidemias. É um vasto território de investigação”. A GRANDE FAMÍLIA O mapa construído pelos pesquisadores da Universidade Colúmbia – que rastrearam, dados genéticos que remontam ao ano de 1492 — permitiu entender como os europeus das genealogias estudadas se espalharam pelo mundo. De 1492 a 1650 1- Em 1492, Cristóvão Colombo chegou ao continente americano e iniciou o processo de exploração do Novo Mundo 2- Em 1534, os portugueses estabeleceram as primeiras colônias europeias no Brasil - em Pernambuco e na Bahia 3- Imigrantes desembarcaram no território dos atuais Estados Unidos, em 1620, a bordo do navio Mayflower De 1652 a 1760 1- Os holandeses iniciaram a colonização que resultaria na criação da África do Sul 2- Os britânicos dominaram a Índia em 1757 e, com isso, aumentaram a expansão europeia na Ásia De 1780 a hoje 1- Em 1788 a primeira frota de navios britânicos desembarcou na Austrália, estabelecendo o processo de ocupação da Oceania 2- Os ingleses ocuparam a Costa Oeste dos Estados Unidos em 1836 e consolidaram a investida exploratória da Europa 6#7 MODA – UMA JOGADA DE CLASSE Adeus, moletom. Nas viagens da Copa de 2018, a seleção brasileira vai usar terno de corte moderno, do tipo slim fit, com paletó e calça justos ao corpo. MARIA CLARA VIEIRA DEIXADOS aos próprios desígnios, jogadores de futebol costumam privilegiar firulas na aparência: roupas espalhafatosas, diamantes nas orelhas e nos cordões, cabelos — bem, melhor nem comentar os cabelos. Tudo bem. São jovens, são ricos e têm todo o direito de ostentar. Quando se apresentam como time, porém, uma dose de sensatez pode ser sinônimo de elegância. Daí ter sido saudada com elogios a decisão da CBF de vestir a seleção brasileira com terno e gravata nas viagens e ocasiões oficiais desta Copa do Mundo de 2018. O escolhido para requintar o grupo foi Ricardo Almeida, de 62 anos, alfaiate de famosos, o mesmo que Neymar tem acionado desde que resolveu refinar o guarda-roupa. “Foram avaliados os trabalhos de quatro estilistas nacionais, de acordo com o projeto técnico e econômico”, explica Edu Gaspar, coordenador de seleções da CBF e responsável pela encomenda. A estreia será no dia 27 de maio, quando os 23 craques deixam a Granja Comary, em Teresópolis, e embarcam — nos trinques — para Londres, a primeira escala da viagem até Sochi, na Rússia. O costume — nome correto do conjunto calça-paletó — desenhado por Almeida para a seleção é de lã fria em trama de fios nas cores azul-royal e preto, que resulta em um tecido azul-marinho com efeito changeant, ou seja, ele muda sutilmente de tom conforme a incidência de luz. No forro do blazer, Almeida carregou no simbolismo. Linhas amarelas compõem formas geométricas inspiradas no construtivismo russo. Salpicadas aqui e ali, encontram-se imagens das taças dos anos em que a seleção brasileira foi campeã. A gravata de seda também é azul. “O monocromático não é ideal em um ambiente corporativo. Mas, como se trata de jogadores jovens, é bom fugir do tradicional”, aprova o consultor de imagem Alexandre Taleb. O corte é daqueles que não perdoam imperfeições: o chamado slim fit, de calça e paletó apertados e curtos. “Procuro sempre fazer a roupa o mais junto ao corpo possível, até o ponto em que não incomoda quem vai usá-la. Quanto mais fiel à silhueta a peça for, mais elegante o dono ficará. Afinal, a pessoa faz academia para quê?”, brinca Almeida. Os ternos sequinhos circulam nas passarelas há décadas, mas só recentemente venceram as resistências e passaram a moldar, justos e curtos como nunca, os homens elegantes que não têm nada a esconder. Em tapetes vermelhos como o do Oscar, a impressão às vezes é que o bonitão alto e forte veste um número abaixo do adequado. “A roupa coladinha é consequência de uma cultura que valoriza a construção do corpo. Isso não era comum no universo masculino, mas agora é parte do visual do homem da metrópole que faz academia, musculação e cirurgia plástica”, diz o especialista em moda masculina Mário Queiroz. O slim fit fica perfeito em quem tem físico atlético — caso dos jogadores de futebol—, mas mesmo quem não está em plena forma pode usá-lo, afirma o consultor Taleb. “Se a roupa for confeccionada sob medida, o visual ficará mais esguio”, garante ele O terno era o traje social obrigatório da seleção nos anos de ouro: 1958, 1962, 1970, quando o futebol brasileiro colecionou vitórias e ganhou destaque internacional. Aí vieram os patrocinadores com seus logos onipresentes aplicados em agasalhos esportivos, e adeus, terno — o moletom dominou o meio de campo. Conquistou tamanha relevância no guarda-roupa dos jovens que, nos últimos anos, mudou de patamar. O agasalho que era só confortável virou moda irreverente e ganhou grife, sobretudo na figura dos rappers americanos. A transição da seleção para o terno bem cortado reflete um certo amadurecimento da profissão de atleta. A seleção bem-vestida nasceu, é claro, nos dois principais centros de difusão da alta moda masculina: Itália e Inglaterra. Até agora, a Itália ganha de lavada. Os ternos das seleções recentes foram desenhados por Dolce & Gabbana, dupla que se encontra no olimpo das marcas refinadas. Já os costumes ingleses são criação da Marks & Spencer, marca de varejo muito menos charmosa. A Inglaterra, por outro lado, tem a seu favor no jogo da elegância o fato de ser o país de David Beckham, pioneiro do reposicionamento dos craques da bola — sujeitos sempre mal-ajambrados — em modelos de marcas caras e chiques. Agora é a vez de a seleção brasileira dar sua contribuição ao time dos boleiros bem-vestidos. A jogadores num terno bem cortado, de gravata e sapatos de couro, perdoam-se até mesmo os cabelos heterodoxos. Todos, menos o moicano. 6#8 ESPORTE – ELAS QUEREM SER MARTA A jogadora eleita cinco vezes a melhor do mundo serve de inspiração para as mulheres que enfrentam duras rotinas em busca do sonho de viver do futebol. ALEXANDRE SENECHAL Numa edição comemorativa de seu vigésimo aniversário, a revista ESPN, braço impresso da emissora de televisão, elegeu os vinte esportistas mais influentes deste século. O número 1 é Tiger Woods, o anjo caído do golfe. Na nona colocação, à frente de nomes como Usain Bolt, Lionel Messi e Cristiano Ronaldo, há uma única atleta do Brasil — assim mesmo, no feminino. A honraria coube a Marta Vieira da Silva, eleita cinco vezes, de 2006 a 2010, a melhor jogadora de futebol do mundo. Dona de duas medalhas de prata olímpicas e um vice-campeonato mundial, ela hoje joga pelo Orlando Pride, dos Estados Unidos. Orgulha-se de sua história, mas se ressente do pouco espaço que lhe dedicam no próprio país. “Se fosse do futebol masculino, a repercussão seria evidentemente maior”, disse Marta a VEJA. Ela tem razão. Há muitas Martas por aí, tentando chegar aonde ela chegou, e certamente com menos oportunidades que os tantos Neymares que buscam a fama, e que também sofrerão no caminho. Desde 16 de março, uma equipe de VEJA percorre o Brasil na expedição Vozes do Futebol. Durante quarenta dias, ela passará por quinze estados. A ideia é flagrar como o esporte mais querido do mundo mexe com a vida dos brasileiros. Uma série de reportagens será publicada na edição impressa da revista e nas versões para tablet e smartphone. Diariamente, os relatos da viagem pedem ser vistos no site de VEJA. Numa das paradas, em Goiânia, os repórteres da revista encontraram mulheres que, apesar da falta de investimento, apesar da dificuldade de romper o alambrado de machismo que cerca o futebol, apesar de tudo, querem ser Marta. É o caso da mineira Daiane Braga, cujo plástico movimento, um voleio, ilustra a foto ao lado. Daiane e sua turma inauguram a coleção de reportagens de Vozes do Futebol por ecoarem uma das mais interessantes facetas de um esporte ainda movido a testosterona no Brasil. Apelidada de “Carioca”, Daiane joga no Jaó, o atual campeão goiano, que no domingo 25 disputou uma vaga na Série A2 do Campeonato Brasileiro. Perdeu por 3 a 1 para o Napoli, da cidade catarinense de Caçador, e foi eliminado. Funcionária pública, ela tem dupla jornada — fato comum longe dos grandes centros, como Rio e São Paulo, estados em que dá para viver apenas da bola. Quando tem campeonato, Daiane se ausenta do trabalho em São Paulo com uma licença e vai até Goiânia. “Pagam para nós passagens, hospedagem e refeições. Quando vem alguma ajuda de custo, o dinheiro é muito pouco e dá para, no máximo, comprar uma chuteira”, diz a meio-campista de 28 anos, formada em educação física e com uma terceira ocupação: é treinadora de um time infantil masculino em Cotia, em São Paulo. Ela sorri ao contar que dirige uma equipe de meninos, e não de meninas, um pequeno avanço comportamental, que muitas atribuem às conquistas de Marta com a camisa da seleção brasileira. É uma possibilidade que gradualmente se espalha e dá ao futebol feminino um pouco do tom de empoderamento das mulheres que se vê na sociedade em geral. No Campineira, também de Goiás, clube que tem times masculino e feminino, quem comanda tudo é uma mulher. “O descaso e o preconceito ainda existem, mas já foi pior”, afirma Cristiane Monteiro dos Santos, a Cris, técnica e fundadora do clube. “Certa vez, um colega treinador disse que a minha participação faria do campeonato uma ‘bagunça’. No final do torneio, apertei sua mão e retruquei: ‘O time da mulher foi campeão em cima do seu, que é treinado por um homem’.” São pequenas vitórias que não autorizam a dizer que há profissionalismo adequado no futebol de mulheres. Não há, apesar da existência de duas divisões brasileiras apoiadas pela CBF. Um centro de excelência para o futebol feminino anunciado em 2014, em Foz do Iguaçu, previa captar 60 milhões de reais — não conseguiu um mísero real. Com produção de Allan Brito (Última Divisão) ________________________________________________ 7# CULTURA 2018.04.04 7#1 TELEVISÃO – DE MENTE ABERTA 7#2 CINEMA – A DESVENTURA COLONIAL 7#3 CINEMA – NA CALADA DA NOITE 7#4 LIVROS – DEMOCRACIA ESPIRITUAL 7#5 VEJA RECOMENDA 7#6 OS LIVROS MAIS VENDIDOS 7#7 J.R. GUZZO – MAIS UM REI NU 7#1 TELEVISÃO – DE MENTE ABERTA Ao exibir um cativante super-herói esquizofrênico, Legion — cuja segunda temporada estreia nesta semana — encabeça uma tendência: a das séries sobre distúrbios psíquicos. MARCELO MARTHE Internado num hospício desde que suas perturbações culminaram em tentativa de suicídio, David Haller (Dan Stevens) gasta seus dias como um típico caso de esquizofrenia paranoide. Sempre dopado, ele percebe à sua volta somente a algaravia dos doidos e a visão de um paciente catatônico babando na cadeira de rodas. A essa realidade de pesadelo mesclam-se delírios, como a companhia de uma figura feminina imaginária, a endiabrada Lenny (Aubrey Plaza). Certo dia, surge do nada uma garota linda e loira com o sugestivo nome de Syd Barrett (Rachel Keller) — sim, homônima do vocalista que comandou o Pink Floyd na primeira e mais lisérgica fase da banda inglesa. Syd lhe apresenta um punhado de amigos estranhos, que dão um jeito de tirar Haller do hospício e mudam ligeiramente seu diagnóstico: na verdade, ele não é louco, mas um mutante dotado de superpoderes mentais. Seus fantasmas não viriam da mania de perseguição: agentes de uma organização real e um certo Rei das Sombras, figura de cara gorda que vive em seu cérebro como parasita, desejam destruí-lo. A essa altura de Legion, série cuja segunda temporada estreia nesta terça-feira, às 23 horas, no canal Fox Premium 2, a confusão já se instalara de vez dentro e fora da cabeça de Haller — deixando deliciosamente aturdido, de roldão, o espectador. “Sabe qual é a coisa mais perigosa sobre a esquizofrenia? É quando sua doença o convence de que você não é doente. Se você acreditar, não tem volta”, resume o personagem, com cândida lucidez. Criada por Noah Hawley (de Fargo), Legion é possivelmente a mais heterodoxa produção sobre super-heróis já vista na TV ou no cinema — ou, no mínimo, a mais aloprada delas. Ao acompanhar sua brilhante primeira temporada (disponível na Netflix), um desavisado não notaria que Haller é um legitimo representante da turma dos X-Men, da Marvel. O que está em pauta em Legion, no fundo, não é a natureza dos super-poderes de seu herói, nem o uso que ele faz deles: é a própria noção de normalidade psíquica. O grande inimigo a ser combatido pelo protagonista está, afinal, no seu inconsciente (ainda que seja longa, na mitologia dos gibis da Marvel, a história do Rei das Sombras, e de como ele foi parar dentro de Haller). Legion expõe uma tendência inequívoca: estão em voga na TV as séries que exploram a saúde mental por ângulos surpreendentes (confira o quadro). Vários distúrbios saltaram das páginas do DSM-5, manual da Associação Americana de Psiquiatria que é a grande referência no ramo, para a tela. O retrato de uma agente com transtorno bipolar oferecido por Homeland contém licenças poéticas, sim — mas não se pode dizer que seja de todo fantasioso. Carrie Mathison, vivida por Claire Danes na série, que atualmente está em sua sétima temporada, exibe alterações de humor radicais. Sofre quando está depressiva, mas o perigo mesmo são suas fases maníacas: em delírios de onipotência, a agente da CIA expõe-se a altos riscos. Heróis autistas também conquistaram seu lugar: o thriller sueco The Bridge (bem como sua versão americana) e a sitcom Atypical mostram que portadores de uma forma branda da doença, a síndrome de Asperger, não só são capazes de se integrar à vida social, mas revelam-se bons tipos ficcionais, graças às peculiaridades de seu modo de pensar e agir. A ascensão de personagens assim é um desdobramento natural da revolução das séries americanas: sua virada, nas duas últimas décadas, se deu com a valorização dos heróis atormentados. O precursor de todos, em Família Soprano, tinha um prontuário notório: o mafioso Tony Soprano (James Gandolfini) sofria de depressão e crises de pânico. Desde então, as sutilezas da mente só ganharam mais amplitude na TV. The End of the F***ing World, comédia de humor negro do inglês Channel Four (disponível por aqui na Netflix), consegue renovar mesmo um nicho estabelecido muito antes da nova safra de séries sobre distúrbios psíquicos, dado seu apelo em tramas criminais. Seu protagonista é um adolescente que imagina (e até deseja) ser um serial killer, mas é tudo, menos um psicopata de verdade: sente remorso, nutre emoções delicadas e só na marra vai reagir aos verdadeiros monstros com que ele e uma amiguinha antissocial trombam pela vida. O retrato da esquizofrenia feito por Legion não é menos complexo — e mostra-se dos mais felizes, tanto no astral quanto na precisão clínica, já vistos na ficção. O apelido ostentado pelo super-herói Haller é de inspiração bíblica: a legião de terríveis vozes interiores que acossam o personagem remete à profusão de demônios que saem do corpo de um homem e possuem uma vara de porcos depois de expulsos por Jesus. A religião professada pela série, contudo, é a fé na cultura pop: da psicodelia riponga ao glam rock do T-Rex, da ficção científica retrô à la Barbarella aos filmes mudos, a narrativa é uma viagem fragmentária cheia de nonsense e irreverência — que no final, quase por milagre, dá liga. O ápice do primeiro episódio da nova temporada é um divertidíssimo duelo em forma de musical com trilha eletrônica. Dan Stevens, vale lembrar, foi aquele ator que pediu para sair do novelão inglês Downton Abbey por não aguentar seu herói almofadinha. Ao ver sua impagável atuação como Haller, com olhos esgazeados e sorriso perturbador, é inevitável concluir: ele fez muito bem em pedir o chapéu na antiga série. Um ator pode fazer uma legião de personagens na vida — mas terá raras chances de ganhar um papel tão doido de bom. ESTADOS ALTERADOS Se Legion fala da esquizofrenia, outras séries ampliam o leque das doenças mentais retratadas na TV. TRANSTORNO BIPOLAR Carrie Mathison, agente da CIA vivida por Claire Danes em Homeland, é a encarnação rasgada do distúrbio: a heroína que luta contra o terrorismo alterna fases maníacas, nas quais tem delírios de grandeza e invencibilidade, com períodos de depressão lancinante, em que encara insônias infernais e é capaz de pôr a si mesma — e a segurança americana — em risco. AUTISMO No thriller sueco The Bridge, a detetive Saga Norén (Sofia Helin) irrita colegas e testemunhas com seu jeito ríspido. Ser portadora da síndrome de Asperger dificulta as relações sociais, mas traz certa compensação: a alta capacidade de mergulhar nas cenas dos crimes. O Jovem Sam (Keir Gilchrist), da sitcom Atypicat, vive uma vida feliz com a mesma forma branda de autismo. DEPRESSÃO As tendências depressivas de Hannah Baker (Katherine Langford) afloram com força devastadora quando ela se torna o alvo feminino do bullying dos marmanjos de um colégio americano. A soma de fragilidade mental e tortura psicológica resulta no tema-tabu explorado em 13 Reasons Why: o suicídio juvenil PSICOPATIA Em The End of the F***ing World, o distúrbio tão explorado nas séries criminais ganha uma abordagem incomum. O jovem James (Alex Lawther) quer ser um psicopata assassino, mas revela-se o oposto disso: sente remorso e desenvolve empatia por sua vítima em potencial, a amiga Alyssa (Jessica Barden) 7#2 CINEMA – A DESVENTURA COLONIAL Em Zama, da argentina Lucrecia Martel, um oficial da coroa espanhola num fim de mundo sul-americano aguarda uma remoção — e um futuro — que nunca chega. ISABELA BOSCOV DOM DIEGO DE ZAMA (Daniel Giménez Cacho) espera que El Rey mande uma carta e a coroa espanhola, enfim, o tire do vilarejo sul-americano em que ele desempenha obscuras funções oficiais. E Dom Diego espera, e espera, olhando o rio que margeia esse fim de mundo em algum lugar do que é hoje o Paraguai. Embarcações vêm e vão; trazem espanhóis já quase mortos de cólera, ordens de transferência para o governador, alforria para o funcionário insubordinado que passa à frente de Dom Diego no posto europeu. Para Dom Diego, nada, nunca. Lucrecia Martel, a diretora argentina de poucos e marcantes filmes como O Pântano e A Menina Santa, faz de Zama (Argentina/Brasil/Espanha, 2017), já em cartaz no país, uma tragicomédia colonial tão mais contundente por ser tão impalpável. Lucrecia resiste ao enredo, e instaura em seu lugar uma estrutura episódica que por vezes parece desordenada, até incompreensível — e então o espectador se dá conta de que está mergulhado na mesma falta de nexo que assola o protagonista. Ela rejeita também o descritivo, preferindo o epidérmico. Seus enquadramentos congregam personagens diversos em ações distintas, ou personagens e animais com os quais eles convivem em estreita proximidade. Organização ou privacidade são impossíveis ali. Tampouco se consegue formar uma ideia clara da disposição geográfica do lugarejo: transita-se dos casarões dos brancos às palhoças dos indígenas, do calçamento para a mata, sem saber como se chegou aqui ou acolá. Um escravo negro usa libré e sunga; Zama e os outros oficiais põem suas perucas sempre que se encontram, mas sob elas veem-se os cabelos suados. Aliando-se à extraordinária edição de som, tudo isso comunica calor, odores pungentes, a coceira da pouca higiene e dos muitos insetos — e, sobretudo, a vergonha aflita de Dom Diego, extraviado nesse arremedo de civilização, à espera de um futuro que não vem. 7#3 CINEMA – NA CALADA DA NOITE Um Lugar Silencioso testa os limites das relações pessoais e até da interação humana com o mundo físico: no seu universo pós-apocalíptico, qualquer ruído traz a morte. I.B. É UM CONTRASSENSO delicioso que o Michael Bay de Transformers, o mais barulhento de todos os cineastas, seja um dos produtores de Um Lugar Silencioso (A Quiet Place, Estados Unidos, 2018; estreia no país nesta quinta-feira), um combinado de horror e drama que, honrando seu título, se desenrola quase todo na ponta dos pés, aos murmúrios e em linguagem de sinais. Até a trilha de Marco Beltrami resiste a romper a quietude: numa Terra tão rapidamente esvaziada que se encontra quase intocada, qualquer ruído corriqueiro significa morte certa — uma voz humana, um talher contra um prato, um degrau que range bastam para atrair o ataque das criaturas responsáveis pela extinção quase completa da humanidade. Lee (John Krasinski) e sua família resistiram até aqui porque sua filha mais velha, Regan (Millicent Simmonds), é surda, e a comunicação por gestos é parte de sua rotina. Mas esse novo cenário pede compenetração absoluta. Exige, por exemplo, que se exista socialmente sem nenhuma possibilidade de vocalização e que se interaja com o mundo físico como se todo ele fosse uma armadilha. Lee e sua mulher, Evelyn (Emily Blunt, casada com Krasinski também na vida civil), entretanto, têm em mãos uma adolescente entrando na fase de rebeldia, um menino em pleno terror da puberdade (Noah Jupe, de Extraordinário) e também um bebê a caminho. Em seu segundo longa como diretor/ator, Krasinski, de The Office, dá uma contribuição admirável ao novo cânone pós-apocalíptico, de filmes que, em vez de mostrar os cenários amplos da extinção, preferem espiá-la por uma fresta da intimidade familiar ou pessoal. Seu filme é cinema B de ótima qualidade, feito com pulso, com inventividade visual e trato ágil das convenções de gênero, e com comprometimento ferrenho do elenco — no qual se destaca a fabulosa Millicent, do recente Sem Fôlego, deficiente auditiva de fato. E mesmo de silenciar até Michael Bay. 7#4 LIVROS – DEMOCRACIA ESPIRITUAL Lincoln no Limbo, de George Saunders, apresenta o grande presidente americano em luto pelo filho — e no meio de uma ruidosa convenção de fantasmas desgarrados. JERÔNIMO TEIXEIRA A AÇÃO de Lincoln no Limbo se dá em um espaço paralelo ao mundo material, habitado por uma extravagante multidão de espíritos desgarrados entre a vida passada e algum estágio posterior desconhecido. E George Saunders, de 59 anos, autor de quatro aclamadas coletâneas de contos (só uma delas, Dez de Dezembro, publicada no Brasil), parece ter sido possuído ao escrever este vigoroso primeiro romance, vencedor do prêmio Man Booker do ano passado. E como se ele houvesse encarnado o espírito turbulento do poeta nacional dos Estados Unidos — Walt Whitman (1819-1892). O ímpeto desmedido do poeta que desejava fazer soar em seus versos todas as vozes da sociedade americana anima igualmente a ficção de Saunders. O escravo e o senhor de escravos, o casal de alcoólatras miseráveis e a senhora avarenta e rica, o presidente do país e seu filho morto aos 11 anos de febre tifoide: todos falam — e falam muito, e falam com eloquência e beleza — em Lincoln no Limbo. O título original não fala no limbo, mas no bardo, espaço intermediário entre a morte e o renascimento na tradição budista tibetana (Saunders, como bom hipster, cultiva o budismo). Mas o pós-morte descrito aqui fica entre o imaginário cristão (o reverendo Everly Thomas, um dos principais fantasmas da história, mantém-se no limbo por medo de cair no inferno) e certa fantasia gótica pop (a aparência dos espíritos passa por metamorfoses grotescas que caberiam em uma comédia de Tim Burton). A história transcorre em uma só noite de fevereiro de 1862, quando o espírito de Willie Lincoln, de 11 anos, surge no cemitério de Washington, onde seu corpo foi depositado em um mausoléu. Ele é recebido por dois antigos habitantes do local, Hans Vollman, impressor que morreu quando uma viga desabou do teto sobre sua cabeça, e Roger Bevins III, que, atormentado com os próprios desejos homossexuais, se suicidou na adolescência. Vollman ainda espera retornar à esposa jovem com quem não chegou a ter relações sexuais, e Bevins arrependeu-se de ter cortado os pulsos quando já era tarde demais para estancar a hemorragia. Ambos se iludem com a ideia de que estão apenas convalescendo em suas “caixas de doente” (isto é, caixões). Mas Willie não está enredado nesse autoengano: está apenas confuso. Fica ainda mais confuso quando seu pai, melancólico e desconsolado, visita o mausoléu e retira o pequeno cadáver de seu nicho para tomá-lo uma derradeira vez no colo (consta que Abraham Lincoln fez visitas noturnas ao cemitério, mas é incerto que tenha mexido no corpo do filho). Lincoln não vê o espírito do filho, nem nenhum dos outros fantasmas. Os espíritos veem Lincoln, mas não o conhecem — há muito tempo afastados do noticiário político, ignoram que aquele homem alto e triste se tornara, no ano anterior, o 16º presidente dos Estados Unidos. Tampouco sabem que sobre os ombros do visitante cai a pesada responsabilidade de governar um país rasgado por uma cruenta guerra civil entre o norte abolicionista e o sul escravista. O que os impressiona é o fato de uma pessoa viva e saudável tocar no corpo de um morto querido. Só por isso Willie se torna, sem o desejar, uma celebridade entre os espíritos. E a esperança de que o pai retorne adia perigosamente sua partida para o além. Lincoln no Limbo alterna capítulos feitos só de citações de fontes históricas — reais e inventadas — com longos e oníricos diálogos entre os espíritos. Mas essa narrativa experimental não contorna as cansadas convenções da ficção espírita: para que cada personagem complete seu ciclo, ainda é obrigatória a conciliação com a vida pregressa e a consequente passagem para um outro plano de existência (não ajuda muito que Saunders designe a tal passagem com uma expressão pedante: “conversão matéria-luz”). Esse melaço kitsch se torna talvez demasiado espesso nas páginas finais. A dignidade de Abraham Lincoln, porém, sai imaculada. Na ficção espiritual de Saunders, o presidente, depois de sua noite entre espíritos que não vê, mas que tocam inefavelmente seu pensamento, abraça o sofrimento pela perda do filho e retorna à Casa Branca determinado a pagar o preço amargo da guerra para criar um país livre da mácula da escravidão. Nessa noite de retiro no ermo de um cemitério, ele teve sua experiência whitmaniana, possuído pelas vozes múltiplas de seu país (“Sou amplo. Contenho multidões”, diz Whitman em Canção de Mim Mesmo). Em abril de 1865, três anos depois da morte de Willie e dias depois da rendição do general confederado Robert E. Lee, Abraham Lincoln foi assassinado em um teatro. O corpo de Willie foi transferido de Washington para Springfield, Illinois, para repousar ao lado do pai. Walt Whitman homenageou o presidente morto em Na Última Vez em que Lilases no Pátio Floriram, uma das mais belas elegias em língua inglesa. Mas isso já não é matéria de Lincoln no Limbo. Saunders oferece ao leitor só uma noite lúgubre da vida de Lincoln. A grandeza do personagem e do país está toda lá. LINCOLN NO LIMBO, de George Saunders (tradução de Jorio Dauster; companhia das Letras; 408 páginas; 59,90 reais ou 39,90 reais em versão digital). 7#5 VEJA RECOMENDA DVD RODA GIGANTE (Wonder Wheel, Estados Unidos, 2017. Imagem) Chega a ser grandiosa a tristeza de Kate Winslet no filme de Woody Allen: como Ginny, que ambicionou ser atriz mas terminou como garçonete de um restaurante no balneário popular de Coney Island, nos anos 50, a atriz exala desapontamento, e faz de uma figura patética — a mulher malcasada, amedrontada pela meia-idade e que afoga as mágoas no copo e no humor autodepreciativo — um belíssimo estudo de personagem. Ginny, à beira da desesperança, encontra uma nova luz no amante Mickey (Justin Timberlake), um aspirante a dramaturgo bem mais jovem que trabalha como salva-vidas (e faz ainda as honras como narrador e alter ego do diretor). Mickey vê em Ginny um bom enredo a escrever no futuro; Ginny vê em Mickey a tábua de salvação de suas desventuras — o marido bronco (Jim Belushi), o filho incontrolável e o arrependimento de ter destruído seu primeiro casamento. Mais uma decepção, porém, a aguarda: em fuga do marido bandido, sua enteada jovem e atraente (Juno Temple) imediatamente chama a atenção de Mickey. O tom às vezes é teatral em demasia, mas a ambientação quente e nostálgica e a atuação de Kate são uma compensação mais que suficiente. LIVRO 10:04, de Bem Lerner (tradução de Maira Parula; Rocco; 272 páginas; 30,90 reais) O título deste romance do poeta e ficcionista americano Ben Lerner é o horário em que o herói vivido por Michael J. Fox em De Volta para o Futuro faz sua viagem na máquina do tempo. O tempo e suas transformações preocupam o protagonista sem nome de 10:04 — um escritor que parece ter muito em comum com Ben Lerner. Aclamado pelo primeiro romance (tal como Lerner por Estação Atocha), ele se prepara para ser pai (a mãe é uma amiga que fará inseminação artificial) e observa as transformações sociais (e meteorológicas: o furacão Sandy, de 2012, aparece nas páginas finais) de Nova York. Trata-se de um retrato sensível e melancólico dos dilemas de uma geração. DISCO AFTER BACH, de Brad Mehldau (Nonesuch; disponível em plataformas de streaming) O pianista americano Brad Mehldau já fez recitais no Carnegie Hall, em Nova York, nos quais tocava peças de Brahms e Schubert de acordo com o que está na partitura. Mas Mehldau é antes de tudo um músico de jazz. Neste disco dedicado a Johann Sebastian Bach (1685-1750) — um compositor erudito admirado por monstros do jazz como o saxofonista Charlie Parker e o pianista Bill Evans —, ele se debruça sobre os prelúdios e fugas do mestre alemão para criar livremente a partir desse rico material. After Back: Rondo é uma homenagem bem no espírito original de Bach. Já outras faixas do disco estão mais próximas do impressionismo do século XIX e do modernismo do século XX que do barroco setecentista. Tal é o caso da intrincada Before Back: Benediction e de Prayer for Healing, que revela influências de Debussy. 7#6 OS LIVROS MAIS VENDIDOS FICÇÃO 1- OUTROS JEITOS DE USAR A BOCA. Rupi Kaur. PLANETA 2- AINDA SOU EU. Jojo Moyes. INTRÍNSECA 3- TEXTOS CRUÉIS DEMAIS PARA SEREM LIDOS RAPIDAMENTE. TCD. GLOBO 4- O QUE O SOL FAZ COM AS FLORES. Rupi Kaur. PLANETA DO BRASIL 5- ORIGEM. Dan Brown. ARQUEIRO 6- COMO NÃO CONQUISTAR O SEU CHEFE CEO BILIONÁRIO. Katherine Laccomt. 3DEA 7- O LIVRO DOS RESSIGNIFICADOS. João Doederlein. PARALELA 8- O CONTO DA AIA. Margaret Atwood. ROCCO 9- MAIS ESCURO. E. L. James. INTRÍNSECA 10- A REVOLUÇÃO DOS BICHOS. George Orwell. COMPANHIA DAS LETRAS NÃO FICÇÃO 1- SAPIENS: UMA BREVE HISTÓRIA DA HUMANIDADE. Yuval Noah Harari. L&PM 2- UMA BREVE HISTÓRIA DO TEMPO. Stephen Hawking. INTRÍNSECA 3- COMO OS ANIMAIS SALVARAM MINHA VIDA. Luisa Mell. GLOBO 4- HOMO DEUS. Yuval Noah Harari. COMPANHIA DAS LETRAS 5- LEONARDO DA VINCI. Walter Isaacson. INTRÍNSECA 6- O DIÁRIO DE ANNE FRANK. Anne Frank. RECORD 7- FEMINISMO EM COMUM. Marcia Tiburi. ROSA DOS VENTOS 8- SEJAMOS TODOS FEMINISTAS. Chimamanda Ngoze Adichie. COMPANHIA DAS LETRAS 9- RÁPIDO E DEVAGAR. Daniel Kahneman. OBJETIVA 10- A VERDADE VENCERÁ. Luiz Inácio Lula da Silva. BOITEMPO AUTOAJUDA E ESOTERISMO 1- A SUTIL ARTE DE LIGAR O F*DA-SE. Mark Manson. INTRÍNSECA 2- O PODER DO HÁBITO. Charles Duhigg. OBJETIVA 3- O PODER DA AÇÃO. Paulo Vieira. GENTE 4- SEJA F***! Caio Carneiro. BUZZ 5- A SORTE SEGUE A CORAGEM. Mario Sergio Cortella. PLANETA 6- PROPÓSITO. Sri Prem Baba. SEXTANTE 7- POR QUE FAZEMOS O QUE FAZEMOS?. Mario Sergio Cortella. PLANETA 8- COMBATE ESPIRITUAL. Pe. Reginaldo Manzotti. PETRA 9- MINDSET. Carol S. Dweck. OBJETIVA 10- O PODER DO AGORA. Eckhart Tolle. SEXTANTE INFANTOJUVENIL 1- A PARTE QUE FALTA. Shei Silverstein. COMPANHIA DAS LETRINHAS 2- EXTRAORDINÁRIO. R. J. Palacio. INTRÍNSECA 3- TARTARUGAS ATÉ LÁ EMBAIXO. John Green. INTRÍNSECA 4- O PEQUENO PRÍNCIPE. Antonie de Saint-Exupéry. VÁRIAS EDITORAS 5- HARRY POTTER E A PEDRA FILOSOFAL. J.K. Rowling. ROCCO 6- HARRY POTTER E O PRISIONEIRO DE AZKABAN. J.K. Rowling. ROCCO 7- HARRY POTTER E CÂMARA SECRETA. J.K. Rowling. ROCCO 8- FELIPE NETO. Felipe Neto. EDIOURO 9- HARRY POTTER E A ORDEM DA FÊNIX. J.K. Rowling. ROCCO 10- HARRY POTTER E AS RELÍQUIAS DA MORTE. J.K. Rowling. ROCCO 7#7 J.R. GUZZO – MAIS UM REI NU VAMOS PENSAR um pouco, com calma, para ver se dá para entender melhor o que está acontecendo na frente de todo mundo. O ex-presidente Lula foi condenado a pouco mais de doze anos de cadeia por corrupção passiva e lavagem de dinheiro — crimes mais graves do que fazer um apontamento de jogo do bicho, por exemplo, e que por isso têm de ser punidos com pena de prisão fechada, segundo o que está escrito na lei. Lula foi condenado a nove anos e meio, num primeiro julgamento, pelo juiz Sergio Moro, da 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba, em 12 de julho do ano passado — após quase dez meses de depoimentos, perícias, exame de provas e contraprovas, exigências sucessivas dos advogados e mais todos os etcs. de uma ação penal iniciada contra ele em setembro de 2016. Foi uma sentença de 218 páginas, fundamentada em cerca de 1000 itens, na qual foram ouvidas 99 testemunhas, das quais 73 apresentadas pela defesa. Até aqui, tudo dentro da lei e das garantias devidas ao réu, certo? Certo. Lula apelou da sentença, então, para o estágio superior seguinte, o TRF4, de Porto Alegre. Ali foi julgado em 24 de janeiro deste ano por três desembargadores, condenado de novo, por 3 a 0, e sua pena foi aumentada para doze anos no xadrez. Recorreu em seguida para o degrau acima, o STJ de Brasília, onde sua reclamação foi julgada por cinco ministros; perdeu outra vez, agora por 5 a 0. Voltou, enfim, ao mesmo TRF4 que já tinha lhe socado doze anos no lombo, e perdeu mais uma — foram outros 3 a 0. Resumo da peça: o ex-presidente está se defendendo desde setembro de 2016 e não teve, até agora, um único voto a seu favor. Foi zero, zero e zero, mais a sentença inicial de Moro. O que seria preciso, ainda, para chegar à conclusão de que Lula é um criminoso condenado pela Justiça e teria de ir para a cadeia? Mais nada. Mais nada para a cabeça de uma pessoa normal. Eis aí por que a situação que se vive no momento é perfeitamente incompreensível, mesmo pensando com toda acalma. É um jogo que está pelo menos em 9 a 0, já passou dos acréscimos e só não acaba porque Lula não quer que acabe. O Supremo Tribunal Federal e os políticos, em peso, ficam agachados diante do homem, tratando de servi-lo — ou com medo de suas ameaças. Qual é o problema dessa gente? O direito de defesa para o réu foi assegurado plenamente desde o primeiro minuto do processo; pouquíssimos brasileiros, salvo amigos seus como um desses Odebrecht ou Joesley, que têm bilhões para gastar com advogados, jatinhos, peritos, computadores, pesquisas, caravanas de “apoio” e por aí afora, conseguiriam ter uma defesa tão completa e tão cara quanto a que Lula teve até agora. Dizer que é preciso respeitar a “presunção de inocência” até “prova em contrário”, como repetem seus despachantes no STF, é simplesmente uma piada — ou, mais exatamente, uma tentativa alucinada de fazer você de palhaço. É óbvio que todo acusado é inocente até prova em contrário — mas só até prova em contrário. Uma vez feita a prova, o réu deixa de ser inocente; passa a ser culpado. Na Justiça de qualquer país civilizado, a sentença, a certa altura, é a prova. Afinal, alguma autoridade, a uma hora qualquer, tem de dizer se as provas apresentadas até então valem ou não valem; do contrário, nenhum processo acabaria nunca, em lugar nenhum do planeta. No caso de Lula, a prova foi feita quando o que se chama “segunda instância”, ou o TRF4, de Porto Alegre, decidiu que a sua condenação estava fundamentada por fatos. Fim de jogo. Ele ainda pode continuar apelando, mas teria de fazer isso na prisão. É assim nos Estados Unidos, na Europa, no Japão: uma vez condenado em segunda instância, o sujeito vai para a cadeia. Faz todo o sentido. No Brasil, menos de 1% de todas as sentenças confirmadas em segunda instância é modificado, depois, em algum tribunal superior. Esse tumulto em torno de Lula só existe porque a suprema corte de Justiça do Brasil decidiu governar o país como uma junta de ditadura; manobra para ele ser declarado, na prática, impune por qualquer crime passado, presente ou futuro. Querem fazer em favor de Lula o mesmo que o regime militar fez em favor do delegado Sérgio Fleury, do Dops de São Paulo, em 1973: condenado como torturador, ganhou o direito de apelar em liberdade pela “Lei Fleury”. Os donos do STF conseguem, a cada dia, ficar mais parecidos com a “corte suprema” da Venezuela, que torna legal tudo o que os gângsteres do governo mandam que seja legalizado. São, em seu conjunto, mais um rei nu neste país.